quinta-feira, 14 de junho de 2012

Mamoru Oshii


Nome: Mamoru Oshii
Profissão: Realizador, Argumentista
Data de Nascimento: 8 de Agosto de 1951
Naturalidade: Japão
Filmografia (parcial):
Dallos (1983)
Urusei Yatsura: Only You (1983)
Urusei Yatsura 2: Beautiful Dreamer (1984)
Angel's Egg (1985)
Twilight Q (1987)
The Red Spectacles (1987)
Patlabor: The Movie (1989)
Maroko (1990)
Stray Dog: Kerberos Panzer Cops (1991)
Talking Head (1992)
Patlabor 2 (1993)
Ghost in the Shell (1995)
Avalon (2001)
Ghost in the Shell 2: Innocence (2004)
Amazing Lives of the Fast Food Grifters (2006)
The Sky Crawlers (2008)
Kill (2008)
Assault Girls (2009)
Tetsujin 28 1/2 (2010)




Mamoru Oshii: A alegoria como último reduto narrativo

 [Originalmente publicado no #39 Waribashi]


Numa altura - talvez como a nossa - em que o sentido se desloca inteiramente dos significados, em que não parece permanecer uma vida para além da vida e todo e qualquer tipo de inquietações maiores nada mais são do que esponjas secando ao sol do nosso quotidiano e dos outros, poder-se-á  voltar a narrar os estranhos acontecimentos que pautam as vidas humanas, ou melhor, contar-se a vida humana como uma totalidade determinada pelo próprio conto. Foi este sempre o sentido da alegoria: a fúria das palavras que, ao criar um mundo de espelhos (os sentidos imediatos paradoxais aos mediatos), cristalizariam a essência humana como um todo. Hoje, precisamente porque nada temos de cristalizado, de certo, voltamos inegavelmente à mesma necessidade que conduzia os homens do Mundo Antigo a contar histórias face à adversidade de um mundo anti-narrativo por essência caótico. A alegoria foi assim, não só um estádio importante no desenvolvimento da linguagem humana (porque ela propõe uma abstracção que se relaciona com todo o tipo de expressão simbólica ou poética), mas também uma arma. Uma arma evolutiva, na esteira das primeiras pedagogias morais e das primeiras existências religiosas. Em suma, o traço alegórico é um dos vestígios primordiais que a humanidade possui, da passagem vertiginosa que vai do animal para o homem.
É com alguma incompreensão que certos olhares se direccionam para o corpo artístico de um realizador como Mamoru Oshii. Usualmente, a sua maneira de orquestrar e montar uma narrativa resume-se a um conceito ou conceitos muito sólidos e uma execução, por sua vez, pesada na omissão de certas características fundamentais que tornam uma história mais clara e verosímil - por exemplo, um típico filme de Oshii não têm tempos nem espaços exactos e os personagens costumam actuar numa espécie de dormência que proporciona longos monólogos ou silêncios misteriosos -, estando certamente todo esse processo criativo de desenvolvimento narrativo e dos personagens subordinados aquele núcleo essencial, que representa as primeiras ideias ou a ideia. Foi assim que Ghost in the Shell (1995) mostrava ao Ocidente, pela primeira vez, um estilo de fabricar concepções narrativas muito mais próximas da literatura do que propriamente da linguagem cinematográfica, e ainda aparentemente mais distantes dos cânones da animação tradicionalmente entendida como tal. É verdade que as componentes visuais são sempre bastante atractivas e até revolucionárias em qualquer trabalho de Oshii (sendo essa a ponte perfeita que faz a ligação entre a parte conceptual e a parte motora do seu trabalho) só que se não atendermos ao estritamente conceptual e se só a animação nos fizer sentir apreço, estamos escapando à questão essencial dos filmes de Oshii. 





Uma nova apropriação de uma linguagem antiga

Mamoru Oshii foi dos primeiros realizadores modernos (senão o primeiro) a encaixar uma assinatura alegórica tão forte e distinta em géneros e propostas das quais não se esperaria essa natureza, sendo de tal modo radical, que toda a ambiência das suas obras se alastra no decifrar de símbolos e significados perdidos. É certo que a primeira parte da sua prolífica e diversa obra (a que começa nos anos 70 e vai das variadas séries anime como Yatterman, passando pelas inovações narrativas de Dallos, até aos dois filmes de Urusei Yatsura) não reflecte ainda totalmente esta visão segundo a qual a alegoria, ou seja, a necessidade pura da ambiguidade das múltiplas leituras e sentidos, molda a própria criação em questão em todas as suas transformações, desdobramentos e aparências.
Mas chegado a 1985, Oshii realizaria aquela que é sua verdadeira obra de maturidade, muito antes de Ghost in the Shell e que prefigura a sua obsessão pela forma alegórica como último reduto narrativo. Angel’s Egg (1985) é um filme de animação que seguindo os trilhos da escrita Kafkiana, anuncia o confronto interior de um mundo dilacerado entre a simbologia de um profundo enraizamento moral, e uma consequente tentativa de transgressão perversa desses mesmos valores anteriormente assimilados. Como se sabe, Mamoru Oshii faz parte de uma minoritária percentagem de japoneses que tiveram uma educação cristã e, reza a lenda, que por volta de 85 perdeu a fé irremediavelmente. Angel’s Egg é o resultado caótico dessa possível queda a si. E se a alegoria normalmente significa o retrato inteiro e integro que, através das fragilidades humanas (da chamada condição humana) nos abre caminho à moralidade (basta pensar-se nos contos infantis!), então a partir de Angel’s Egg as alegorias desvirtuadas de Oshii representam exactamente o inverso: a alavanca proporciona a destabilidade e a ruptura, para o questionamento e a dúvida, para a noite.
Angel’s Egg apropria-se das simbólicas e do meio de comunicação tipicamente cristã para subverter um mito perverso sobre a perda da brancura, sobre a mancha negra que destrói a inocência, pintando um mundo ominoso onde o caos e a maldade dançam na roda viva da vida. O choque desse filme não é mais do que um sentimento perverso de esmagamento que só a alegoria (o tocar no geral, no essencial) nos poderia oferecer. Tudo é misterioso e sagrado, tudo é pintado a negros e azuis e o silêncio impera como manto de um fleumatismo típico da linguagem que opera nos sentidos mediatos. 


A veneração: gosto mitológico e o meta-cinema

Se toda e qualquer expressão do geral (ou seja, de cariz filosófico) agrada à estilística de Oshii, então pode-se entender as suas desconstruções futuristas à luz da criação de uma nova mitologia. Essa redescoberta de uma nova mitologia é composta maioritariamente por três grandes sagas de ficção científica: os seus dois excelentes filmes “live-action” que representam a Saga Kerberos (The Red Spectacles de 1987 e Stray Dogs: Kerberos Panzer Cops de 1991), mais os dois filmes de Patlabor (Patlabor 1, 1989 e Patlabor 2, 1993) e, de seguida a dupla de filmes de Ghost in the Shell (Ghost in the Shell, 1995 e Ghost in the Shell: Innocence, 2004). Podendo ainda considerar Avalon (2001) e o seu mais recente Assault Girls (2009) como pertencentes à mesma saga. O interesse aqui, parece-nos, é o de construir uma narrativa maior e mais abrangente que supera a própria duração individual de cada filme. De facto, no caso de Oshii as suas sequelas são mais do que mero franchise, pelo que cada um dos filmes é uma peça isolada de uma constelação em comum, tal e qual como nos velhos mitos em que a própria assinatura parece contar pouco (Patlabor e Ghost in the Shell estando associadas a Oshii, não são criações originais suas).
É esta característica singularmente veneradora que favorece outra particular obsessão raramente referida no contexto desta obra: a capacidade do cinema de Mamoru Oshii se desdobrar na auto-referência. Em The Red Spectacles, por exemplo, a ficção científica do plot original dá lugar a vários engenhos meta-cinemáticos (isto é, questionando o próprio filme dentro do filme) quando o personagem principal ao fugir das forças especiais do regime opressor, se dá a escapar do próprio estúdio de cinema. Outra situação memorável é o final do mesmo filme em que a cor surge de repente no ecrã preto e branco, como se o filme fosse uma espécie de sonho colectivo. Outro caso seria Talking Head (1992), uma das suas obras mais crípticas, um exemplo puro e duro de meta-cinema, lidando com o processo criativo de um desenhador fantasma e um caso misterioso na feitura de um filme de animação. Por último Tachigui: The Amazing Lives of Fast Food Grifters (2006), que é um caso não só de humor agudo e auto-referencial, como se trata também de um questionamento interno da própria cultura japonesa através de comida, do cinema, e dos próprios mecanismos tradicionais de um filme de animação.
A mitologia e o meta-cinema são dissecações necessárias de um cinema que opera principalmente com a leitura e interpretação de símbolos e signos. Também eles – assim como no traço alegórico das narrativas – vão do literal ao metafórico, do imediato ao mediato e estabelecem uma outra ordem, na maior parte das vezes, mais entrelaçada, mas inquestionavelmente mais rica em conteúdos.  


Ficção científica: Inocência e metafísica 

Parece-nos óbvio que Oshii está associado à ficção-científica. Mas que poderá significar esta preferência temática e que relação tem ela com o esquema alegórico dos seus filmes? Em primeiro lugar, as alegorias de Oshii quando aplicadas à ficção científica não resultam apenas naquele lugar comum, algo infantil, da hiperbolização de certos aspectos da realidade num cenário futurista próximo ou distante. Em Mamoru Oshii, quer seja ficção científica ou não, parece que o mundo que se nos apresenta é sempre inexplicado e o espectador é, na maior parte das vezes, posto "in media res”. No que a este cinema diz respeito, poder-se-ia mesmo dizer que, no essencial, a ficção-científica serve apenas de pretexto para se abrir caminho a temas muito mais intemporais (se os Ghost’s já eram assim, a destilação máxima acontece com The Sky Crawlers (2008) que, através de um cenário distópico, lida extensivamente com o tema da eterna criança num mundo à margem de afectos e comunicação).  É aqui que voltamos a encontrar um tema obsessivo de Oshii: a inocência (não é por acaso que o segundo filme de Ghost in the Shell se apelida de Innocence e lida ele também com a diferença entre autómatos e humanos através do conceito de pureza, que mais não é do que o-não-sabido primordial).
Reencontramos aqui a mesma dimensão circular que já vinha desde Angel’s Egg: ressoam ainda as mesmas temáticas cristãs da inocência como a ausência de pecado e o conhecimento (científico ou não) como o seguimento da destruição e da corrupção dos seus intervenientes. O final radicalmente ambíguo do primeiro Ghost in the Shell pode ser visto como a solução para esta problemática e a Major Motoko Kusanagi como a personificação perfeita de quem, conseguindo aceder ao conhecimento, à rede da informação infinita, renasce literalmente com outro corpo e consegue viver soberanamente, sem se destruir. O próprio final de Avalon que  mostra um confronto profundamente simbólico numa igreja entre uma figura angelical e a personagem principal que lhe aponta uma arma, pode ser interpretado da mesma maneira segundo a qual em Angel’s Egg o ovo superprotegido da criança é quebrado pelo homem perversamente crístico. Ao lidar com o tema da inocência de modo alegórico, Oshii viu-se obrigado a tratar o tema da identidade, da mudança que tanto assume a figura da morte (reais ou figuradas) como de renascimentos simbólicos.
Se as alegorias de Oshii são muito mais do que meras distopias, é  porque elas conservam o único e o mais antigo modo - mas precisamente aquele que, nós modernos, mais negligenciamos e esquecemos – de tentar restituir o humano da forma mais completa e profunda. Porque temos a necessidade ainda de recorrer aos símbolos para nos fazer entender melhor passados tantos milhares de anos? Só eles podem elevar a nossa condição e entendimento momentâneos para uma eterna e concreta essência. Mamoru Oshii é, assim, o exemplo claro de um artista que, apesar da fama de futurista, é um antigo entre os modernos. 

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