sexta-feira, 9 de março de 2012

Sennen Joyu

Título Original: Sennen Joyu
Título em Português: Millennium Actress - A Chave da Vida
Realizado por: Satoshi Kon
Actores: Miyoko Shoji, Mami Koyama, Fumiko Orisaka, Shozo Izuka, Shouko Tsuda, Hirotaka Suzuoki, Hisako Kyoda
Data: 2001
País de Origem: Japão
Duração: 87 min.
M/6Q
Cor, Som









[Originalmente publicado no #34 Waribashi]

A discórdia que separa a animação do cinema tradicionalmente entendido é antiga e remonta às origens destas duas artes. Quase sempre a animação teve o mesmo papel secundário, delegada para ligeiro e infantil entretenimento moralizante pelo mundo adulto que a analisa, como se afinal tudo o que fosse desenhado representasse uma visão simples e simplificada da realidade. "The World for dummies and for children"é o que pensa o homem civilizado sobre a animação (como igualmente acontece com a Banda-Desenhada: considerando-a um imortal facilitismo de leitura, a eterna e insuficiente opositora da literatura). Uma maneira possível de querer ignorar o profundo valor das coisas é hierarquizar, e mesmo o cinema (uma arte, hoje, insuspeita) já foi no princípio do outro século um espectáculo circense ostracizado pela maioria da gente dita séria. Pode ser que, da mesma forma que o cinema ganhou o seu terreno e se desenvolveu numa arte plena, o mesmo acontecerá (e está acontecendo) à animação. Com o prematuro, prematuríssimo desaparecimento de Satoshi Kon neste mês de Agosto - um dos realizadores que mais radicalmente fez para se distanciar de qualquer suspeita que poderia ainda recair sobre a animação como género tão digno e tão capaz como o cinema, como qualquer outro - é tempo de repensar a sua importância, revendo agora retrospectivamente uma obra que, apesar de curta, é incomparável; que apesar de "mainstream" é indesmentivelmente autoral.
Millennium Actress (2001) foi o segundo filme de Satoshi Kon e desde logo se demarca aquela tonalidade negra e uma intensidade esgotante (representada pela confusão de identidades) proposta no seu genial começo de carreira em Perfect Blue (1998), todavia a mesma vontade de quebrar barreiras de realidade mantêm-se, no fundo, perfilando uma imensa vontade de transfigurar o real, não pelo excesso carnavalesco mas pelos subtis e subliminares jogos de sombras que a própria realidade nos oferece como se de uma dádiva se tratasse. Millennium Actress é um filme à medida do espectador, pois tudo se desenvolve progressivamente com ele; não ao modo do enigma, mas de forma a que a cada passo se reconheça o vidente na coisa vista com uma emocionante autenticidade. Com isto queremos dar a entender que. por causa de diferentes camadas de interesse que analisaremos a seguir, o espectador é puxado para a adoração e contemplação de um mundo que, mesmo com os seus momentos de decisiva tristeza, é representado como um milagre.
A premissa original é simples: «Na sequência da demolição das instalações do histórico estúdio Ginei, Genya Tachibana, um produtor de televisão, é contratado para fazer um documentário acerca da sua actriz preferida de sempre, Chiyoko Fujiwara. A mulher retirou-se há muitos anos para uma casa num monte, levando desta forma uma vida isolada. Tachibana solicita uma entrevista com Chiyoko, agora com 70 anos, sendo-lhe a mesma concedida. Em decorrência disto, dirige-se para o refúgio da actriz, acompanhado do seu “cameraman”. Aquando do início da entrevista, a sala da casa de Chiyoko transforma-se num turbilhão de memórias. Começamos por observar o encontro de uma Chiyoko adolescente, com um jovem artista revolucionário que é perseguido pelas autoridades. A rapariga esconde-o dos seus perseguidores, e acaba por se apaixonar por ele. O rapaz acaba por fugir para a Manchúria, onde os japoneses combatem, e Chiyoko promete que tudo fará para ir ter com ele. Pouco tempo depois, o presidente dos estúdios Ginei repara em Chiyoko e oferece-lhe um papel num filme de propaganda de guerra, a ser rodado na Manchúria. A rapariga aceita, vendo aqui uma oportunidade para cumprir a sua promessa. No entanto, o encontro com o seu prometido não se chega a realizar.» (sinopse retirada da crítica de Jorge Soares no blog My Asian Movies)
O primeiro plano narrativo diz respeito a uma primeira paixão amorosa que por ser adiada pelo tempo, e impossibilitada pelo espaço e pelas ocasiões se transforma numa fantasia saudosista e, por isso mesmo, numa busca angustiante. O filme retrata essa melancolia intercalando-a sabiamente com a profissão meio inesperada de Chiyoko: se por um lado o que ela mais anseia é o encontro com o artista pintor, o que a faz prosperar, sem ela realmente o desejar, é o seu ofício no estúdio de cinema. É por essa razão que a sua busca incessante pelo ser amado se confunde, a dada altura, com os filmes que ela interpreta: como se tudo isso fosse a real e mais interior motivação do seu trabalho. Nesse aspecto, Satoshi Kon usa e abusa dos traços que lhe são característicos, ou seja, a dissolução de realidade e sonho e a junção num único e mesmo plano do passado (as recordações contadas por Chiyoko) e do presente (as aparições discretas ou até interventivas de Tachibana e o seu cameraman nas próprias memórias).
Se as marcas idiossincráticas, já referidas, de Kon tomam aqui um forma esclarecida para sublinhar as inquietações de Chiyoko (contrariamente a Perfect Blue ou, depois, Paprika em que a confusão propositada do onirismo reina), então outra maneira de interpretar Millennium Actress é tomá-lo como um elgoio à memória. E por memória entende-se não só a forma óbvia da narrativa (contada em "flashback" dinâmico) mas também o próprio cinema, o seu passado e a sua evolução, destilando por isso mesmo uma certa memória colectiva. É curioso (e único) ver a animação tratar o próprio cinema, e mesmo tendo Satoshi Kon caracterizado Chiyoko como "uma personagem universal" (e que o é), a verdade é que o seu carácter e feitio é inspirada por duas musas do cinema japonês da era de ouro (anos 50): Hideko Takamine e, mais pertinentemente, Setsuko Hara.
Inumeráveis cartazes antigos que vão aparecendo no filme se assemelham aos papeís interpretados por Hideko Takamine (nomeadamente 24 Eyes (1954) de Keisuke Kinoshita; um dos mais admirados e aclamados filmes dessa altura). Também Setsuko Hara se retirou muito cedo do mundo da sétima arte alegando a sua falta de interesse no meio (supostamente teria começo a ser actriz para ajudar financeiramente a sua família), à semelhança de Chiyoko que como sabemos sorri para Tachibana dizendo: "Nunca tive interesse pelo cinema".
O facto da animação retratar a história do cinema japonês com tanta liberdade mas ao mesmo tempo com tanta fidelidade prova que até os exercícios mais complexos e subliminares podem ser entregues à animação. Se Millennium Actress é menos radical no conteúdo do que outras obras de Satoshi Kon, a forma mostra ser provocadora e desafiante, como só poderia ser esperado.
Para além da narrativa construída a partir de memórias em movimento (tal e qual como se literalmente fosse um outro filme dentro do filme), Millennium Actress revela-se, afinal, um epitáfio das últimas recordações de Chiyoko, uma mulher que representa precisamente aquilo que, no imaginário do espectador, as actrizes daquela época seriam. É este o papel de Tachibana, talvez o mais ignorado personagem, porém, aquele que centraliza e direcciona o filme não só porque ele é o mediador entre o espectador e Chiyoko mas a verdadeira razão é que através dele se representam as emoções, os sonhos e as esperanças do próprio espectador.
Poder-se-ia mesmo afirmar que a verdadeira história de amor (já que, de amores platónicos se trata) é a de Tachibana e de Chiyoko, ou melhor, a de nós (espectadores, homens e mulheres) por Chiyoko. A intensa admiração; o sentimento de querer possuir as histórias fugazes e eternas, as alegrias e as lágrimas belas e as aventuras que, apesar da idade, transmitem uma pureza de espírito que só o cinema poderia, em última instância, traduzir, são os motes para compreender um filme que nos faz compreender e amar personagens mais reais, mais intimas do que muitas de carne e osso. Agora que Satoshi Kon nos deixou - tal e qual como Chiyoko deixa tristemente Tachibana -, resta-nos agradecer com uma ternura estelar.
Obrigado, Millenium Director.

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