quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Koshikei

Título Original: Koshikei
Título em Português: Death by Hanging
Realizado por: Nagisa Oshima
Actores: Yu Do-yun, Kei Sato, Fumio Watanabe, Toshiro Ishido, Masao Adachi, Rokko Toura, Hosei Komatsu, Masao Matsuda, Akiko Koyama, Nagisa Oshima
Data: 1968
País de Origem: Japão
Duração: 117 min.
M/12Q
Preto e Branco, Som








I think, to watch our films, should be an action. - Nagisa Oshima

Morte por enforcamento é um marco fulcral para o cinema japonês (e não só) por diversas razões. Se, por um lado, este filme político (o filme político, por excelência) é um amontoar de ideias, de pedras de toque relativos ao cinema vanguardista que até aqui se tinha desenvolvido, comummente apelidado, entre os especialistas, de Nouvelle Vague, ele é também o ponto de viragem para uma nova era. É, em simultâneo, um exercício ecléctico e formal na busca da Estética dos fundadores do cinema revolucionário (Kô Nakahira, Yasuzo Masumura, Shohei Imamura, Susumu Hani, a primeira fase de Koji Wakamatsu e alguns trabalhos de Kaneto Shindo) e um volte-face temático, em forma de antevisão, à geração futura. Koshikei é o filme que divide, podemos dizer assim, duas fases distintas do movimento cinemático da libertação. Se a primeira noção (cronologicamente desde 56 - saída do polémico Crazed Fruit de Kô Nakahira - até 1968) se preocupava, antes do mais, com a independência dos cineastas, acabando com a ditadura dos Estúdios, formalizando o cinema independente (e aqui Susumu Hani com o decisivo papel de (re)inventar o documentário como reflexo e reflexão do real), a outra margem do movimento (de 68 a 1980) é imperada pela radicalidade temática, pela desmesura estilística, por uma experimentalização dos meios cinemáticos como alegorias poéticas e políticas, numa sociedade que já ressacara o inferno da derrota e tinha espaço de manobra para reivindicar a hecatombe como forma de expressão. Ora, este Death By Hanging, é o equilíbrio, justamente, entre a revolução e o caos. Perfaz e resolve o cinema do real, que era revolucionário porque mostrava o pathos colectivo, revelando a cara do vulgo sem forma em tempos de indigência, e prevê a estética babilónica dos filmes de Toshio Matsumoto, Shuji Terayama, Akio Jissoji, Masahiro Shinoda, Yoshishige "Kiju" Yoshida e os anarcas Koji Wakamatsu e Masao Adachi (este último, interpretando em Koshikei, a ordem marcial na pele de um polícia e que, ele mesmo, escreveria o argumento desse filme-manifesto, realizado pelo próprio Oshima, no mesmo ano de 68, Diary of a Shinjuku Thief).
Profundamente enredado em questões éticas e ônticas, Koshikei parece querer ser um tratado sobre a imparcialidade e a busca da verdade no rebuscar da situação controversa da pena de morte. A desmistificação total dos argumentos e das posições à priori, sem conhecimento de causa é tema central no início do filme, o "buscar a verdade, filmando-a", da Nouvelle Vague francesa é o modelo que Oshima sabiamente aproveita como quem vai criando uma retórica discursiva ideal, completamente paradoxal à rigidez da imparcialidade politicamente correcta que numa primeira leitura se quer deixar passar. Se o filme começa com uma espécie de censo, sublinhando-se aqui quase um domínio da ética sociológica, em que a população opina sobre a pergunta: "É contra a pena de morte?", tal facto não nos choca. No sentido em que a opinião do povo pouco vale para Oshima, que na senda de Godard, admite a alienação como a ditadura televisiva das massas; a sua voz impenetrável é uma farpa, logo no inicio, quando apresenta os números da sondagem (onde há claramente uma maioria absoluta contra a pena capital), mas desvaloriza-os, mesmo estando esse resultado a seu favor, arguindo o facto dessas pessoas, nunca terem visto uma sala de execução, nunca terem enxergado o rosto daquele que é executado, no momento em que é executado. Tal refutação do modelo estatístico, puramente inserido num discurso filosófico sobre a validade de opiniões não fundamentada num horizonte de decisão, dá lugar a um traveling aéreo sobre uma câmara de execução. É aqui que se principia o espelhar do real pela ficção. Oshima no seu cinema social (no sentido mais estrito do termo) não tem já aquela típica pretensão ingénua de quem descobre, pela primeira vez, as potencialidades de uma câmara, veja-se o caso, por exemplo, de Hani que acreditava poder filmar o real como coisa concreta, ao alcance do olho colectivo. O cinema de Nagisa desde a sua origem - que nos remete para o seu primeiro filme Ai to kibo no Machi (A Town of Love and Hope) de 1959 - sempre foi uma arte da dramatização, isto é, onde os actores (os actores profissionais, já que nesta era entramos também numa ambiguidade do conceito onde a fronteira que separa aquele que representa e o representado desvanece) tinham a liberdade de encarar um personagem, estudar a sua psicologia e apresentar o seu carácter da maneira mais verosímil. Deste modo, há qualquer coisa de clássico em Koshikei, pois não se segue como cartilha aquele ideal típico de Imamura (e da primeira Nouvelle Vague) no qual o cinema era análogo ao estudo antropológico dos homens, logo o papel dos actores é resumido a mero determinismo sociológico, antes no cinema oshimano perscruta-se, pela via da Narrativa e dos seus artifícios, a formulação de uma tese que obrigatoriamente oferece respostas concretas ao problema. Em Death by Hanging a resposta de Oshima à pergunta é "Não", e é igualmente essa a sua resposta na sua caracterização política em forma de questionário em Nihon no yoru to kiri (Night and Fog in Japan) ou ainda nessa tentativa abismal de traçar a genealogia nipónica baseada em vícios no seu Gishiki (A Cerimónia). É aqui que a arte alcança o seu estatuto de Manifesto, num horizonte estritamente político e filosófico, pois filma-se tentando responder a perguntas, tentando escavar a verdade, como se esta estivesse soterrada, escondida aos olhos de todos.
Neste ponto, Koshikei é profundamente revolucionário e inaugura, de uma forma ou de outra, um cinema que poderíamos chamar de meta-político. Porém, esta sua face cristalina (a da urgência do porquê da justificação da pergunta), enegrece no que concerne a lapidação da ficção como teoria teatral na qual o cinema se insere. É aqui que surge o seu carácter caótico, corrosivo, anarca. Não é de estranhar que Shuji Terayama, esse génio do fundo do icebergue que Freud tanto falava, cite Oshima como influencia primária no seu discurso final em Sho Suteyo Machi e Deyou (Throw away your books, Rally in the streets). Se em Morte por Enforcamento não se formulasse uma estética do caos, em que constantemente se constroem e destroem teorias, aproximando o que era um cinema interrogativo ao cinema do cómico (cómico esse que, parafraseando Ionesco, sendo a intuição do absurdo é mais desesperante do que a tragédia), é duvidoso que alguma vez Terayama pudesse desenvolver uma concepção teatral, anos mais tarde, que era, segundo o seu próprio Manifesto, essencialmente caos. A dimensão ficcional, que como já constatamos, é a criação do escárnio, quase como se se rebuscasse, numa nova formulação, o velho ditame latino Ridendo castigat moris, serve tanto para enriquecer estilisticamente um filme que vive dos seus próprios engenhos, como para contrabalançar, parecendo aparentemente refutar, a sua outra primeira dimensão (a da seriedade política). O que acontece não é isso, antes se aguça o carácter "sério", sublinhando com tinta negra, o absurdo e o anacronismo da prática da pena de morte, ridicularizando todos os seus intervenientes e apologistas. Um Japão, cujas esferas decadentes do poder, estão representadas numa complexa hierarquia de personagens que, à boa maneira do Teatro Épico de Bertolt Brecht cujo espectador é colocado diante de uma situação e estuda-a , são os exemplos a não seguir, a desmontar. Cada personagem-tipo (porque aqui os personagens tornam-se símbolos: os polícias que são a força, o poder executivo, o padre que é a religião, os juristas que são a lei etc.) assistindo ao enforcamento que teima a completar-se, como se uma consciência mais alta se levantasse e não deixasse prosseguir a cerimónia, são representações do pensamento colectivo. Como justificar à luz desta questão, o círculo vermelho central pintado numa parede branca, que está como fantasma omnipresente no seio da Narrativa? Pronta a enquadrar no micro-cosmos que é a câmara de enforcamento, uma realidade bastante mais abrangente? Mais uma vez, Koshikei só prova ser igualmente uma alegoria, sustentada numa simbólica tanto interior (na medida em que a dramatização é conceptualização) e exterior (já que o espaço físico é sobretudo espaço mental).
O culpado coreano que já não se lembra de ser culpado, ecoando uma convicção quase esquizofrénica da memória do crime. "R" que já não é "R", na medida em que não se lembra das suas motivações, perdidas num País opressor, que o faz rememorar o crime, para depois o enforcar conscientemente, naquele fio de pensamento típico: "Daqui se lavam as nossas mãos!" A questão da Pena Capital, afinal, já não é uma mera interrogação da expiação de um crime. É sobretudo, para o legislador que a defende, uma questão "ideológica", adianta Oshima, no seu cinema-dinamite. Mata-se o transgressor, como súmula da vontade da Nação. Porque quem o condena não são indivíduos, mas sim a Nação como identidade colectiva que vê nele um fardo. É aqui, ainda que subliminarmente, se introduz um novo dado para a discussão. "O que é uma Nação? - Pergunta "R" como ser infra-moral, é esta a base da sua amnésia - Não quero ser morto por uma abstracção?" - conclui. O legislador cujo juízo é aguardado por todos - como se fosse esta a última palavra a dar - , liberta-o. Porém aquela sequência assombrosa, em que a porta do exterior se abre como punição, uma luz do ressentimento iluminando todo o quarto escuro, é uma dupla mentira no sentido em que é a própria justificação do carácter ideológico da Pena de Morte. Não se pense que "R" morre porque se apercebeu da culpa. Mesmo sussurrando para si mesmo, o condenado "R", sibila por entre a corda do enforcado (como se fosse o próprio espectador colocado frente à sua punição): "Não sou culpado." A sua morte explica-se, em suma, pela sua existência ser demasiado perigosa, por não serem convenientes as suas constantes interrogações, as suas dúvidas sobre a lei duvidosa dos Homens. Mas para isto, o mesmo legislador diz: "Com esse pensamento, só te resta a morte".
Se não bastava o choque político e estético do desenlace que, a pouco e pouco, exalta- como diria mais uma vez Brecht - os sentimentos até estes se tornarem em conhecimento, propensos a transformarem o homem como ser social que também transforma, o plano derradeiro é de uma dimensão poética inigualável e está lá para provar esta dialética. O espaço em branco do fundo do alçapão, com a corda mergulhada nessa ambiguidade, é a forma de Nagisa Oshima retomar esse diálogo Brechtiano (do espectador que é afectado e afecta) propondo e confessando o carácter teatralizado do filme : O Homem (expectador e expectante) é o objecto de investigação primordial do cinema.

Nota: 5/5

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