domingo, 27 de janeiro de 2008

Gokushiteki erosu: Renka 1974

Título Original: Gokushiteki Erosu: Renka 1974
Título em Português: Extreme Private Eros: Love Song 1974
Realizado por: Kazuo Hara
Actores: Kazuo Hara, Miyuki Takeda, Sachiko Kobayashi
Data: 1974
País de Origem: Japão
Duração: 98 min.
M/12
Preto e Branco, Som









Como temos sempre vindo a referir em ocasiões dispersas nestas publicações, há (ou houve), efectivamente uma época em que o documentário, como forma de cinema, foi posto em causa. Não que com isto se diga que se deixaram de fazer rabiscos cinemáticos sobre a vida para além dos estúdios e da falsidade da actuação, mas que se questionou o estatuto de realidade dessa mesma produção. Qualquer um de nós, deve saber que, em última análise, o documentário tem a pretensão implícta de arrancar na realidade um objecto com uma referência de veracidade inquestionável. Poder-se-ia filmar o choro ou o sorriso como se nada de técnico estivesse, na verdade, a obstruir essa sinceridade do real? Foi a pergunta colocada, em parte, nesses fatídicos anos 50/60, quando se escrevia avidamente sobre teoria de cinema. No Japão, essa dialética afectou a chamada Nouvelle Vague e criou tanto, numa primeira fase, o cinema de Susumu Hani que cria poder filmar a realidade tal como esta lhe vinha aos sentidos, e, noutra ponta, Shohei Imamura que, embora aceitasse essa forma de cinema como gerador do poder político e de massificação enorme, sabia bem onde acabavam as suas fronteiras no que concerne essa busca pela descrição absoluta do real, pois tudo o que é filmado pela objectiva é uma representação de um olhar que jamais é frio e científico. O documentário, era assim para Imamura, um exercício complexo de mentira e verdade, onde se poderia ainda reflectir uma aproximação de uma espécie de reflexão Histórica (A Man Vanishes, History of Postwar Japan as Told by a Bar Hostess ou ainda Making of a Prostitute têm todos, como pano de fundo, esta problemática: a que, no fundo de qualquer falsidade perante a câmara, se envolve, uma dimensão Histórica, essa incontornável pelos sujeitos entervistados).
Porém, ainda mais radical foi a chamada Teoria da Paisagem (problematizada pelos anarcas Masao Adachi e Koji Wakamatsu, e ainda rebuscada por Nagisa Oshima nesse tratado cinematográfico chamado The Man Who Left his Will on Film) que, consistia no facto de se poder apenas filmar (representar) como fonte imutável de realidade, a paisagem. Pois, o prédio ou a esquina que se filma são eternamente reais, nesse segundo ou nesse minuto; tudo o que é filmado sem vida (como se fossem pequenas e quotidianas Naturezas-Mortas) faz já parte do Passado.
Este pequeno resumo das tensões entre filme e documentário para apresentarmos a obra de Kazuo Hara. Este Extreme Private Eros encontra-se, cronologicamente, próximo de todo este díalogo hoje ultrapassado (quando o documentário se torna numa "reportagem" tudo se dissipa), todavia, essa proximidade já um pouco distante das febris discussões teóricas da geração libertada. Este é um documentário que nasce num contexto preciso, mas que sabe originalmente separar-se da dicotomia real/ficção, pois, é um factor adquirido que até onde o olho da câmara alcança, tudo isso é uma verdade (nem que, ultrapassada a mentira, e porque a "a vida é actuar", se chegue, por um processo de purificação, à realidade mais real das coisas). Isto é tão assim que inclusive o espectador pode confundir essa convicção com um sensacionalismo da exploração de sentimentos, ao limite (não é por leviandade que atribuem a Kazuo Hara, o título de mestre do famigerado Michael Moore).
Agora veja-se: um documentário que (segundo as suas palavras) "põe a sua própria família [a de Hara] , e todas as suas emoções e privacidade, perante a câmara" não será um indício de radicalidade e de uma doce iconoclastia face ao rígido sistema familiar hierárquico e imperial japonês? É neste passo que o espectador não sabe como reagir... Face à recente maquinização da privacidade (muito depois de Extreme Private), o normal é confundirmos a coragem de Hara com um sado-masoquismo criativo que não é mais do que um reality-show de emoções faceis onde qualquer nobre sentimento pode ser representado. Na verdade, o intento de Hara quando filma a sua relação com a ex-mulher Takeda Miyuki e com a recente namorada Sachiko Kobayashi, é mergulhar tanto num misto de exploração egoista (self-exploitation), como num altruismo inventivo e comovente. Hara chora com a câmara estática quando Miyuki o deixa, Hara filma voyeuristicamente as novas relações da ex-namorada com soldados GI afro-americanos, inclusive, confronta as suas duas amantes numa discussão acesa.
Love Song 1974 é o culminar daquilo que Kazuo Hara pede ao documentário, "têm de tratar coisas que as pessoas não querem que sejam tratadas". Neste caso, a sua própria vida pessoal, espelhar de uma situação colectiva, guardada com rancores e taboos. Da parte para o todo, Hara executa algo de antropológico, um filme que acaba por ser aquilo que queria representar: intímo. E depois há aquela cena inesquecivel. Hara filma o nascimento da filha mestiça da sua ex-namorada com um soldado americano, numa sequência única e bela. A câmara parada de frente para o parto solitário figura a essência poética da maternidade que atinge um grau emocional expresso apenas na honestidade do real. Embora Miyuki saiba que está a ser gravada, e se a câmara - como diria Imamura - muda quer queiramos quer não o comportamento, quando se trata de um parto há qualquer coisa de essencial, de realmente real que nos assusta. O filho que sai da barriga da mãe, no meio de todo o sangue e de prantos, num quarto solitário, é algo nunca antes filmado. E é por isso que este é um dos únicos documentários que faz jus ao seu nome. Para além da representação, temos confiança em afirmar, que se chegou aqui a uma parte da sinceridade perante esse monstro que é a câmara de filmar.

Nota: 5/5

Sem comentários: