terça-feira, 18 de outubro de 2011

Hotaru no Haka

Título Original: Hotaru no Haka
Título em Português: O Túmulo dos Pirilampos
Realizado por: Isao Takahata
Actores: Tsutomu Tatsumi, Ayano Shiraishi, Yoshiko Shinohara, Akemi Yamaguchi
Data: 1988
País de Origem: Japão
Duração: 89 min.
M/12Q
Cor, Som









Eu acredito que há qualquer coisa de especial que só a animação consegue cumprir. É esta espécie de realismo. Realizando, espero que os espectadores compreendam. - Isao Takahata

I
Há um espectro que ameaça decisivamente o homem e o seu sentido. Há um espectro que paira sobre o homem, e a esse espectro chamamos de absurdo. Não é por coincidência que é unânime o consenso trágico à volta de The Grave of the Fireflies: tudo nele faz erguer uma montanha de escombros de um tempo em crise constante, de um final de tempo. Tudo na sua lógica intrínseca poderia rememorar aquele momento final de época - expresso por Paul Celan -, momento Histórico esse que representa uma conversão de impossibilidade, isto é, o peso que o mundo passou a carregar desde aí, tornou-o impossível de habitar. A frase final do trailer para cinema era bastante específica quanto a este ponto: "Nós viemos contar-vos as coisas que todo o mundo esqueceu". O aviso é grave, sorumbático e fúnebre. Já o crítico Ernest Rister comparava a especificidade do terreno dramático de Grave of the Fireflies à Lista de Schindler, como também Roger Ebert numa crítica apaixonada ao Chicago Sun Times referia ser este o "filme de animação mais real, em sentimento". Mas poderá haver uma omissão essencial relativa à tragédia e relativa ao modo como ela se torna quase insuportável neste caso tão específico.
Existe a possibilidade do filme de Isao Takahata ser bastante mais do que um relato amargurado com tons intimistas acerca do flagelo da guerra e as suas vítimas, como Ebert o classificava. Claro que não se pode negar essa componente indispensável. É um facto: o próprio romance no qual o filme se baseia é uma revisão semi-autobiográfica de um Akiyuki Nosaka à procura de redenção da sua culpa, testemunha e causador indirecto da morte da sua irmã de quatro anos, assolada por subnutrição no meio do último ano da Segunda Guerra Mundial. No entanto, a questão não é a de apagar a base Histórica, mas sim a de indagar as verdadeiras causas desta tristeza unânime, sem fim e sem nome que, de cada vez e a cada novo visionamento se torna ainda mais presente e mais agressiva.
A missão do filme ancorado nas representações Históricas é o de tornar um passado distante num presente o mais próximo possível do espectador, senão ninguém se poderia relacionar com o que quer que fosse de Histórico. Relativo a este modelo do filme Histórico está associada uma noção de que a condição humana é imutável, logo que não é susceptível de ser conformada no tempo. Por isso, o típico filme de guerra quer-se o mais próximo possível deste modelo: essa condição humana, imutável e imanente das personagens (outros como nós, iguais a nós espontaneamente, como se a própria História não efectuasse sempre uma conformação constante daquilo que chamamos humano), ao ser colocada diante do flagelo da guerra, diante, pois, da inumanidade, cria uma tensão de contrários, cria a tragédia no desenlace. Assim poder-se-ia encarar a narrativa de Seita e da sua irmã Setsuko: um estar constantemente, e sem qualquer repouso, exposto não só ao perigo de morrer, mas mais decisivamente, diante daquilo que eles não são (em rigor, ninguém é), o contrário de tudo aquilo que se quer ser.
Em rigor, raramente são as circunstâncias Históricas enquanto tais as que nos transmitem o pathos, porque delas não temos nenhuma notícia existencial (neste caso, só a geração que esteve viva nos anos 40 pode, de algum modo sentir a História). Mas de todo o modo, o que de facto nos emociona é sempre uma presentificação do passado, ou seja a existência de um personagem como nós que está dentro do próprio passado, de um passado ficcionado, a viver no presente as problemáticas e as angústias Históricas a que só temos acesso nos livros e nos documentos, de tal modo que as próprias circunstâncias do passado são encaradas como um meio para se sentirem elas mesmas. Assim, falarmos de filme Histórico como a principal razão justificativa do carácter trágico é insuficiente, porque a verdade é que a História por si só, não comove ninguém ao ponto da intensidade lancinante presente em The Grave of the Fireflies.

II
Acerca de Grave of the Fireflies a nossa consideração é muito decisiva: todos nós o sentimos, mas não conseguimos compreender as razões pelas quais o nosso sentimento se funda e toma esse sentido intimamente trágico. Como se sabe, tendemos a encarar aquilo que chamamos de sentimento como uma unidade pré-justificada, e em última análise, quando questionamos as razões que desembocam numa forma qualquer de sentir, surge um pudor extremamente seguro de si que toma as rédeas e decide não responder a nada, por respeito a esse mesmo sentimento. De facto, a maneira mais fácil de enquadrar uma explicação para a infinita e dura melancolia de um filme como este é aprisioná-la na descrição (tão omnipresente como o sentimento que todos nós temos ao vê-lo) de este ser um filme que descreve os horrores e as infâmias da guerra de uma maneira nova e num contexto Histórico-realista. O contexto é sem dúvida nenhuma, realista, e é precisamente essa a sua revolução, só que essa forma de realismo é diferente do que pode fazer parecer, ou seja, não é somente uma forma mais natural ou não artificial de apresentação do filme, mas mais do que isso. No entanto, certamente essa é a pista fulcral que nos permite decifrar esse enigma trágico que este filme representa.
Isao Takahata numa entrevista contemporânea à saída do filme, fez a formulação acima transcrita e, no caso, trata-se de uma felicíssima maneira de traduzir, mais uma vez, a estranheza peculiar de um filme desta categoria. Diz ele que "é essa espécie de realismo, a coisa especial que só a animação consegue cumprir." Não se sublinharam as palavras "espécie" (de realismo) e "só" (a animação consegue cumprir) por acaso. Esta frase, intuitivamente compreendida, representa um quebra-cabeças. Falar de um carácter privilegiado da animação, no sentido em que só ela (e não o cinema de imagem real) pode converter uma forma de realismo é, aparentemente, uma contradição nos termos. Porquê? Porque a animação é justamente aquilo que nos aparta da realidade, na medida em que ela, por estrutura e definição (e na melhor das hipóteses), só pode copiar a realidade (na maior parte dos casos, nem se dá a esse trabalho), podendo representar um mundo que, ao ser criado de raiz por um desenho, está subjugado, por simplicidade de redução obrigatória, a um outro mundo mais real do que ela. A prova disto mesmo que se disse é que no contexto de animação, o autor da criação é bastante mais preponderante e soberano do que no cinema "live-action" (ele pode criar actores de raiz etc.), mas tudo aquilo que ele pode representar não deixa de estar preso a um mundo já por si completamente estabelecido, o mundo determinado que o próprio desenhador vive. Pode-se assim pensar que o estatuto da realidade da animação é sempre uma imitação insuficiente da realidade mais original que julgamos viver. Mas será mesmo assim?
Quando Grave of the Fireflies nos faz chorar compulsivamente, porque não nos detemos e exclamamos para nós mesmos: "São só desenhos!" Não nos parece aqui, todavia, que este seja o mesmo problema de num filme de imagem real exclamarmos: "São só actores!" e suspendermos assim a nossa afectação e, por consequência, afeição. Tal deve-se ao facto da tragédia presente em Grave of the Fireflies ser contra tudo aquilo que se poderia pensar à partida, uma tragédia da animação (o que, num contexto live-action seria completamente absurdo: a tragédia nunca é a da "actuação"). Ou seja, é precisamente pelo modo como Setsuko e Seita estão representados (e o mundo perversamente colorido a que eles estão associados) que a tragédia assume níveis tão agudos; é também porque eles são desenhos que uma suposta ordem, uma ordem de sentido ligada à paz, aos "finais felizes" da animação admitida subliminarmente, sendo transgredida de uma forma imensamente cruel e real, nos convoca para a não-indiferença radical. Assim encontramos novamente o adjectivo real, que aqui é revolucionariamente utilizado como o constante transcender e transgredir, o sucessivo ultrapassar das próprias regras e determinações da animação. Pegando na frase de Takahata, só e apenas a animação tem esta capacidade de converter uma espécie de realidade, porque ela sempre se inicia, justamente, na ilusão (na não-realidade) e, podendo caminhar pelas possibilidades trágicas do real, se destrói e torna-se, ela sim consequentemente, mais real do que a própria realidade em que nos movemos.

III
Nunca a animação se aventurou em níveis de auto-questionamento tão grandes como estes. Quando o corpo de Setsuko está magro e frágil, não é logo a magreza e a decadência de um corpo humano que apreendemos, mas a de um "desenho" em trânsito para a morte. Quando a mãe dos dois irmãos é despojada numa maca e a sua figura é irreconhecível, a tremenda intensidade que sentimos jamais poderia ser a mesma se essa mesma cena fosse filmada com actores. A razão porque não viramos os olhos do ecrã, a razão porque assistimos à cena do último suspiro inocente de Setsuko até ao fim, prende-se com este mesmo facto: não ficamos surpreendidos aqui pelo teor da violência (essa causar-nos-ia repúdio), mas pelo ponto-de-aplicação da violência: um mundo que julgávamos ser até aqui não-susceptível de realidade.
Mas, ainda pior do que a simples violência é a concretização dela no seu mais extremo radical: a morte (que Takahata, na sua interpretação do romance, estende ao próprio personagem principal) é o final fechado de todos estes personagens que perfilam num mundo arruinado e às escuras, tal e qual como os pirilampos que vão voando quando a noite entra, símbolos todos eles de uma morte prematura e, por isso mesmo absurdamente deslocada. Já Setsuko pergunta porque morrem seres tão belos, misteriosos como os pirilampos? Uma pergunta que o próprio espectador poderia colocar às personagens animadas com o mesmo grau de indeterminação quanto à resposta.
Há um espectro que ameaça decisivamente o homem e o seu sentido.Há um espectro que paira sobre o homem e a esse espectro chamamos de absurdo. E esse absurdo não deixa, no entanto, de ser aquilo pelo qual, justamente, sentimos toda a afinidade possível e imaginária, de maneira tal que Grave of the Fireflies, talvez o mais absurdo e o mais trágico filme de todos os tempos, se constitui em nós como uma incógnita de significâncias radicais e problemáticas.

Sem comentários: