sábado, 10 de março de 2007

3-4x Juugatsu

Título Original: 3-4xJuugatsu
Título em Português: Boiling Point
Realizado por: Takeshi Kitano
Actores: Yûrei Yanagi, Yuriko Ishida, Gadarukanaru Taka, Dankan, Makoto Ashikawa, Beat Takeshi, Hiroshi Suzuki, Naoko Shinohara
Data: 1990
País de Origem: Japão
Duração: 96 min.
M/16Q
Cor, Som







Boiling Point, incursão misteriosa da juventude no mundo negro da criminalidade que demonstra não só a sua falta de aspirações, mas também o estaticismo de um mundo (meio-suburbano) integralmente cristalizado. Depois de Violent Cop, esse drama policial niilista, Takeshi Kitano desenvolve em crescente a sua técnica e a sua ideologia de realizador. Por isso, opta neste Boiling Point por uma escuridão abatedora presente quer na narrativa, quer nas personagens, uma violência rápida, fugaz e chocante, um humor negro, sádico e vilipendiante. É curioso, também, presenciar como é neste seu segundo filme que Takeshi premeia, a par de todo o caos selvático, a existência de um apaziguamento da violência, fornecido pela praia (agente esse tratado ainda com mais respeito em filmes como o surdo material, mas nunca espiritual A Scene at the Sea, e o melódico-infernal Sonatine).
Minimalista em todos os aspectos, com uma economia de diálogos considerável, também é aqui que Kitano começa a brincar com a montagem. A existência de inúmeros cortes eliptícos - imagem de marca visível majestosamente também num Takeshis' - só alicerça o ambiente negro, trágico e destrutivo da película. É o caso do rapaz que compra uma mota sem carta, e derepente, está logo na outra imagem da sequência espalhado no chão - vítima de um acidente de viação - sangrando do nariz, fazendo com que se olvide o acidente concretamente falando. O espectador, com efeito, não sabe se há-de rir ou se há-de sentir um vazio melancolicamente inexplicável, tal é a complexidade emocional das situações. Outro aspecto que nos faz considerar este sentimento do nada em Boiling Point são as cores: elas são cinzentas, silenciosas, paralizadas no espaço e no tempo, pelo que poderíamos dizer que o ambiente geral do filme é - não morto, mas sim - anestesiado.
Anestesiados são também as personagens de 3-4x Juugatsu. Que para Takeshi Kitano representam, de forma geral e resumida, os jovens. Esses seres apáticos, sem esperanças, emoções ou valores que explodem num egoísmo alienado pela sociedade rigída japonesa. Num Kids Return, a juventude era tida como persistentemente falhada, neste Boiling Point nem há espaço para falhar, tudo está adormecido por dentro. As personagens movem-se unicamente por acção-reacção, vivem na filosofia do "deste-me um murro, portanto toma outro". Masaki e Kazuo - os dois amigos no derrolar das situações - vão à procura de uma arma para vingar o seu treinador de baseball, ex-yakuza que foi espancado pelos seus antigos colegas mafiosos. Masaki, o herói por antítese da história, é desde o início do filme um falhado. Um rapaz que joga pessimamente baseball, não tem namorada e é perseguido por yakuzas que procuram pancadaria. Ora, a mudança de planos na narrativa - tão própria de Kitano - faz mudar este jovem falhado - tão semelhante à maioria - num vencido. A dada altura, ele marca um home-run, salvando a equipa amadora da catástrofe, arranja uma namorada bonita, porém facilmente conquistável e faz uma amizade muito especial com mafiosos rebeldes (sendo que um deles, Uehara, é interpretado sublimemente pelo próprio Kitano).
Os dois jovens estancados num local longe de casa, são convidados a seguirem o trilho de dois mafiosos - fugindo estes de uma organização yakuza inteira que os quer mortos, caso não paguem uma dívida - e uma mulher. Veja-se aqui, como este estranho embarque invernal, porém com resticíos de Verão, está também ele presente em Sonatine ou em Kikujirô no Natsu (O Verão de Kikujiro) sob formas diferentes, porém com personagens, acontecimentos e peripécias semelhantes. No fundo, não se esqueça que a arte de Kitano é pegar nas obsessões criativas e torná-las circularmente, em realidades paralelas, distantes do tempo e paralisadas quanto ao espaço.
Posto isto, face à atónita juventude dos dois rapazes, junta-se no encontro fortuito, a loucura e decadência dos criminosos e da namorada. Uehara - o chefe da pandilha - é a típica personagem kitanesca, isto é, a personalidade disformizada ora pela infantilidade absurda, ora pela violência fisíca e sexual. Numa das cenas mais chocantes da película, Kitano - que dá vida à monstruosidade suicida de Uehara - manda o seu melhor amigo deitar-se com a sua namorada, tendo como objectivo final sodomizá-lo. Num diálogo único entre os dois gangsters diz-se isto:
«- Chefe, em que está a pensar?»
«- Muitas coisas. (rindo-se)»
De facto, esta excelente caricaturalização de Kitano, continua a permanecer como uma das suas melhores. A loucura selvagem descarregada tanto no seu melhor amigo, como na sua namorada, esta última espancada duramente, numa cena degradante e chocante. Face a esta banalização de sexualidade e da violência, os dois jovens reagem, como é óbvio, com um silêncio longo, constrangedor, conformista. Outras situações se passam e, como já se referiu, o espectador não sabe onde se apoiar, emocionalmente falando. Se há de rir inocentemente quando os amigos jogam um baseball improvisado na praia, ouvindo o mar, ou se há de se revoltar quando nessa mesma cena, Uehara espanca a sua namorada por ter dormido com o seu melhor amigo, a seu comando.
A narrativa assume um carácter fatalista. Uehara sabe que vai morrer logo quando é primeiramente introduzido ao espectador. Ele e o seu companheiro embarcam - como se se ensaíasse aqui já o destino trágico de Sonatine - numa última viagem. A prova é que, por pequenos momentos, o chefe dos mafiosos torna-se, na recta final da incursão, num semi-deus. Num mestre de cerimónias transcendente que pode decidir a vida e a morte, e por isso, se coroa num matagal de plantas carnívoras, olhando de frente para o espectador, simbolizando o seu poder no (seu) micro-mundo. Porém, o semi-deus não pode escapar ao destino, e o seu destino é morrer, não como mártir de uma sociadade criminosa e desesperada, mas sim como um vilão, um anti-herói perverso e perdido nos labirintos do suicídio. Note-se que mesmo também neste aspecto, Hana-bi e Sonatine se entrecruzam com este Boiling Point.
No final, Masaki provoca também ele o seu acto de mártir, explodindo com um camião no edifício dos yakuzas que o maltrataram. Depois, acorda numa casa-de-banho, no mesmo plano que se inicia o filme. Tudo foi um sonho de Masaki. O falhado sonhou, um dia, ser um vencido, porém continuará a ser o que era. E a sua fúria de mudar, representar-se-á, apenas em vãos sonhos e pensamentos.
Posto isto, questionamo-nos se valerá a pena categorizar Boiling Point como um filme de gagsters, ou, pior, como um filme à la Tarantino. De todas as maneiras, Boiling Point continua a ser a besta indomável, mas o filho querido de Kitano, pois não sendo o seu primeiro filme como realizador, é o seu primeiro filme como artista e pensador.

Nota:

Outras Notas:
Pedro Mourão-Ferreira:

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