quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Vertigo

Título Original: Vertigo
Título em Português: A Mulher que Viveu Duas Vezes
Realizado por: Alfred Hitchcock
Actores: James Stewart, Kim Novak, Barbara Bel Geddes, Gavin Elster
Data: 1958
País de Origem: Estados Unidos da América
Duração: 128 minutos
M/12
Cor (Technicolor), Som










Lembro-me de ver "Vertigo" há mais de dois anos. Desde o início do retroprojecção, tentei dedicá-lo uma boa crítica. Mas a verdade é que este filme merece mais do que uma boa crítica, porque não me considero pessoa para escrever críticas excepcionais. Posso afirmar que "Vertigo" é uma das maiores obras-primas existentes no cinema, sendo, para mim, o mais surpreendente do não tão aclamado realizador aquando das estreias dos seus filmes, Alfred Hitchcock (é graças a Truffaut que o mestre do suspense é mundialmente reconhecido). Depois de alguma reflexão, li uma crítica desta "película" no 2º volume de "Os Filmes da Minha Vida" de João Bénard da Costa, director da cinemateca portuguesa (desde 1991). A minha visão de "Vertigo" e muito mais encontra-se nesta crítica que merece ser difundida, e é isso mesmo que vou fazer.

Vertigo
(A Mulher que Viveu Duas Vezes)


"Truffaut dizia que Notorious (1946) é a quintessência do génio de Hitchcock. Há quem diga que é The Birds (1963). Os mais requintados (Rohmer, por exemplo) citam Under Capricorn (1949). No tempo em que vos falei de Os Filmes da Minha Vida, escolhi Marnie (1964). Hitchcock, um dia, nomeou Shadow of a Doubt (1943). Já tive as minhas horas de Spellbound (1945), de Strangers on a Train (1951) e de I Confess (1952). Quando vi Dial M For Murder (1954) em três dimensões, dei-lhe a primazia. Incontável gente prefere Rear Window (1954), North By Northwest (1959) ou Psycho (1960). Quem não gosta de Hitchcock (ou seja, quem não gosta de cinema) costuma dizer que gosta muito de The Trouble With Harry (1956). Talvez ainda ninguém seja suficientemente crescido para ver Topaz (1969), Frenzy (1972) ou Family Plot (1976), Hitchcocks ditos de decadência. Qual é então o mais belo?, pergunta-me o espelho. Todos esses e Vertigo também. Vertigo é o mais belo dos filmes.

Hitchcock sempre nos disse muita coisa (espécie de resumo do essencial) nos genéricos e nas suas famosas aparições. No genérico de Vertigo (da autoria de Saul Bass) quando se lê «Alfred Hitchcock presents James Stewart in Vertigo» não se vê Stewart nenhum, mas um olho, a boca, os cabelos de Kim Novak, cujo nome só aparece algum tempo depois. Será Kim Novak? Kim Novak é, mas a questão está em saber quem é ela no filme e qual das personagens que têm a aparência de Kim Novak surge, em fragmentos, nesse genérico-puzzle. Será Carlota Valdès, essa que morreu há duzentos anos, que tem um retrato no museu e que, segundo um velho alfarrabista, no fim da vida, passeava maluquinha pelas ruas a perguntar se alguém lhe tinha visto a filha que perdera? Será Madeleine Elster, a louríssima mulher do náutico Gavin Elster, neta ou bisneta da tal Carlota e reencarnação dela? Será Judy Barton, morena e ordinária, vagamente puta, que vive num quartito de hotel barato e só «nasce» na segunda parte do filme? Mato quem me responda que tal tripla desidentidade tem resposta lógica à visão do filme. Lógica é o que nele nunca há. Desde o princípio, a figura geométrica é a espiral e numa espiral nunca se entra e duma espiral nunca se sai. Carlota Valdès usava os cabelos apanhados assim, Madeleine Elster também e Judy Barton só ascende a elas quando sai da casa de banho penteada da mesma maneira.

E, se três são as aparências de Kim Novak, quatro ou cinco são os nomes de James Stewart. Midges, a primeira namorada que lhe conhecemos, chama-o Johnny ou Johnny O, sendo que o O tem provavelmente o mesmo sentido do O de Roger O. Thornhill para Cary Grant em North By Northwest. Quando Eva Marie-Saint lho pergunta, ele responde que zero é zero, sentido nenhum. É a única pessoa que lhe chama assim, que lhe chama sempre assim e esse nome perde-se quando Midges (Barbara Bel Geddes) desaparece do filme, numa das sequências mais misteriosas dele, ao fundo de um corredor, na mesma situação que Madeleine descrevera como sonho recorrente: «I walked down in a long corridor. In the end of the corridor, nothing but darkness and I was into the dark.» Midges é também a Mulher do genérico? Pelo menos, tal como Carlota e tal como Madeleine, não ficou para ver Judy, que com ela nunca coexiste. E um dia, lembram-se?, auto-retratou-se como Carlota, provocando em Johnny uma perturbação vizinha do terror. Talvez nunca esperasse que a mulher que lhe diz no hospital: «Mother is here» e que desenha soutiens («you're a big boy now») o tentasse também daquela forma.

Madeleiene chama-o John, «good, strong name». Também só ela o chama assim e, depois da morte de Madeleine, John nunca mais é nomeado no filme.

Scottie é o nome por que Judy o trata, desde que o trata por alguma coisa até Scottie descobrir (plano do colar) que ela o enganara todo o tempo. Quem lhe volta a chamar John não é ela, mas Madeleine, depois de ressuscitada, tal como John volta a chamá-la Madeleine («I loved you so, Madeleine.»).

Finalmente, é Ferguson para a polícia ou para o marido de Madeleine que como polícia o vê. E é o polícia quem subsiste no final (como no início) para «desmascarar» a «culpada», para se curar da vertigem («I made it») e para tudo se perder nessa descoberta e nessa cura. Como um dia escreveu Luís Noronha da Costa: «Scottie é na verdade morto pelo seu duplo (ele mesmo), o polícia Ferguson, pequeno polícia de São Francisco que se arvorou em criador e perdeu.» Eu acrescento: Ferguson não mata apenas Scottie. Mata John e Johnny (ou Johnny O) como mata Carlota, Madeleine, Midges, Judy.

Vou agora até à aparição de Hitchcock. Ocorre entre a cena em que Johnny O se desequilibra no alto de uma cadeira («I look up... I look down...») em casa de Midges, que o tenta curar das vertigens, e a cena da visita a casa de Elster, o marido de Madeleine. Já sabemos que Johnny é incurável e que o down o atrai muito mais que o up. Na conversa com o velho amigo, este tenta aparentemente puxá-lo para cima (dar-lhe um novo trabalho, uma nova missão policial) mas está de facto a preparar-lhe a queda mais abismal, conduzindo-o até Madeleine e até Carlota. É entre o «big boy» e o «polícia», entre a mãe de Midges e a mulher fantasma e vampiro, que Hitchcock situa a sua aparição, atravessando uma rua, muito seguro de si e do seu equilíbrio. Hitchcock anuncia Elster, o outro inventor daquela história. O único que, como ele, sabe de tudo. O único a quem o crime compensou.

Volto ao genérico, com a música de Herrmann que copia os temas de Tristão e Isolda. A primeira imagem do filme é uma barra horizontal, destacando-se de uma massa indefinida. Plano fixo, durante alguns segundos. Depois, duas mãos agarram a barra e a câmara, de muito alto, dá-nos a ver a cidade e a noite. As mãos são de um perseguido que foge pelos telhados de dois polícias, um fardado e outro à paisana. O homem consegue içar-se na barra e continua a fugir. O mesmo consegue o polícia fardado. Mas o polícia à paisana - Ferguson - não o consegue e fica suspenso do alto de um arranha-céus, agarrado à barra que se começa a desconjuntar. O polícia fardado volta para trás e tenta ajudá-lo, estendendo-lhe a mão. Mas Ferguson, apavorado, retira-a no segundo decisivo e o colega cai e morre. Grande plano da cabeça de Ferguson e da barra que cada vez cede mais. É impossível - ou parece impossível - que Ferguson se possa salvar. Corte e vamos reencontrá-lo, efectivamente salvo, no apartamento de Midges, envolvido num colete de gesso.

A elipse é misteriosíssima, porque nunca saberemos como é que Ferguson escapou. E terá escapado? Ou foi ele o primeiro a voltar, como Johnny, «dentre os mortos» (título do romance de Boileau e Narcejac que serviu de base ao filme) e a sua sobrevivência é da lógica do onírico ou do sobrenatural? Tudo se passou como num sonho, como nesse pesadelos clássicos em que sonhamos que vamos cair e acordamos. Ao menos metaforicamente, como um dia notou o crítico Robin Wood, James Stewart fica ao longo de todo o filme «suspenso sobre o grande abismo». E, suspenso sobre ele, acaba o filme, quando Judy cai do alto do convento espanhol.

Abrigado em casa de Midges, ao som de Mozart (que voltará com a mesma peça - o andante da Sinfonia nº 34 - na clínica), Johnny readquire confiança bastante para voltar a brincar com as alturas. Mas volta a cair (nos braços de Midges) e depois ao aceitar a proposta de Elster.

As imensas sequências (quase todas sem diálogos) em que o vemos wandering atrás da wanderer Madeleine, são, cripticamente, viagens a espaços de morte, sempre tratados como espaços de visões proibidas. Houve uma vez um leitor (M. E. Pinheiro Silva) que me escreveu duas longas cartas sobre essas sequências (a da loja de flores, a do museu, a do cemitério) e as viu como um catálogo de perversões eróticas, como se se fosse penetrando em recantos cada vez mais proibidos de um lupanar de aberrações. A profundíssima perturbação (nossa e de John) tem que ver com isso, como se a personagem fosse arrastada para visões que jamais quis ter. Nas traseiras da florista, como na soleira da porta do museu, na recepção do hotel, no túmulo de Carlota Valdès, Johnny é o voyeur de um vício abissal, «vampirizado» por uma mulher que só vê de costas (ou de perfil) e que nunca olha para ele. Carlota ou Madeleine, ou seja quem for, é Eurídice conduzindo Orfeu aos Infernos e proibindo-lhe o olhar na entrada e não na saída deles. Quando o fantasma se volve corpo (quando Johnny a salva depois de ela se atirar às águas) esse corpo é mais aparição do que a erótica imagem dele, que vimos antes. Perdidamente apaixonado por uma morta (e foi Hitchcock quem disse que este era um filme sobre a necrofilia), John tem de consumar verozmente a sua posse. Que se passou entre o plano em que a despiu (e que não vemos) e o plano em que ela acorda na cama de Johnny, vestida com o roupão dele? Mas quando John parece acreditar que vida aconteceu, Madeleine desaparece de novo e não há tempo nem explicação possíveis para ela se ter vestido e saído da casa de John.

Eurídice, disse eu. Mas também Ofélia (a loucura, o corpo nas águas) ou Isolda, possuídora de misterioso filtro. É a morta (Carlota Valdès) e é alguém que sabe que vai morrer, como na sequência genial em que se opõe à sequóia semperviva, «always green, ever living». E morre, de facto, ao menos como Carlota, quando atravessa os altares e as igrejas e a vertigem impede John de subir com ela as escadas em espiral.

Ressuscita como Judy? Não, não ressuscita. Como também escreveu Luís Noronha da Costa: «Judy não é só uma mulher mais vulgar do que Madeleine. É sobretudo uma perda na criação.» E nem o mais lógico dos espectadores pode acreditar que Judy tenha existido sempre e que Madeleine fosse uma ilusão. Por isso, quando ela vem do escuro e do corredor (o tal escuro e o tal corredor onde Madeleine e Midges se perderam) vestida como Madeleine, ou quando sai da casa de banho penteada como Madeleine, a luz é igual à do plano do cemitério e à do túmulo vazio onde John desce. Carlota Valdès ressuscitou, por fim.

Ou, se quiserem, ressuscitou o fantasma da mulher, o corpo que vimos no genérico, porque a paixão sempre cria a ilusão do duplo e só nessa ilusão se perfaz. Contra o mundo dos fantasmas, dos mortos-vivos, das aparições, da água que escorre, das ondas do mar, nada pode o mundo das sequóias sempervivas, das raízes, da duração e do tempo.

Judy nada pode contra Madeleine, como Madeleine nada pode contra Carlota Valdès. Como o real nada pode contra cinema assim. Eu juro-vos que Kim Novak não existe. E eu juro-vos que continuarei pela vida fora a ver em cada esquina e em cada rua Madeleine, Madeleine. «Where is my Madeleine? Have you seen my Madeleine?»

Fui muito críptico ou muito «poético»? Também se pode resumir o filme dizendo que ele começa com um polícia a matar um polícia e acaba com um polícia a matar uma assassina. E, olhem, não se está longe da verdade."

Publicado em "Os Filmes da Minha Vida", 2º Volume
de Bénard da Costa, João

"One final thing I have to do... and then I'll be free of the past." - Detective John "Scottie" Ferguson

Nota: 5/5

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