quinta-feira, 12 de junho de 2008

Sonatine

Título Original: Sonatine
Título em Português: Sonatina
Realizado por: Takeshi Kitano
Actores: Beat Takeshi, Aya Kokumai, Tetsu Watanabe, Ren Osugi, Masanobu Katsumura, Susumu Terajima, Tonbo Zushi, Kenichi Yajima, Eiji Minataka
Data: 1993
País de Origem: Japão
Duração: 93 min.
M/16Q
Cor, Som








Da verde planície, que corta a areia grossa distante, aproximam-se duas figuras arrastando-se, enquanto o som do vento e das ondas deixa vislumbrar um céu carregado de nada. Enquanto se disparam tiros e palavras cujo significado é nenhum, simultaneamente um rosto gélido dilacera a fúria impigida no absurdo. Nessa invisibilidade primordial observa-se o vazio absoluto. De seguida, um carro escapa-se de plano, subindo uma encosta que se parece dissipar no céu uniformemente vácuo, enquanto o vento beija a rapariga que aguarda dormente o seu regresso na paisagem silenciosamente deserta. Não tenho certeza se esta cena existe mesmo como vos conto, ou se é mesmo possível filmar dessa maneira, mas necessito começar por dizer que não há nenhum filme como este. Não significa isto que Sonatine seja o filme dos filmes ou a obra máxima (títulos que dispensam comentários por resumirem o irreduzível), mas porque há nele (e só nele) uma espécie de perfeita conciliação metafísica do retorno. Uma estilística tão melancólica quanto bela quanto silenciosa, que funciona num domínio completamente intuitivo no qual cada cena revela um segredo, uma aparição (não narrativo-racional, mas sensorial). Sonatine parece ser, estranhamente o filme-sinestésico, que comporta um não-sei-quê original por excelência.
Se Kitano vinha já desenvolvendo o silêncio nas suas obras anteriores, e como consequência aplicava um minimalismo narrativo fundamentado principalmente no conceito da viagem (em Boiling Point e Scene at the Sea a viagem como que desloca o âmbito inicial da narração, criando na história contada uma dinâmica indiscutível: a do inenarrável), aqui em Sonatine aperfeiçoa-se essa obsessão pela fuga, canonizando-a num jogo de contrastes entre nostalgia contemplativa e acção do desespero. É dito que o cinema de Takeshi Kitano se faz constantemente naquela linha-de-sombra ténue entre escuridão e luz. Portanto, é um cinema cujos contrários estão ainda mais demarcados, justamente porque ambos possuem o mesmo espaço para surgirem com a mesma intensidade na tela. Deste modo, igualmente se formula em Sonatine o amadurecimento e o final do que poderíamos chamar uma primeira etapa no percurso de Kitano. Assim, este quarto filme é, numa primeira análise, a revisitação completa dos outros três: contêm a violência crua e o desespero de Violent Cop, o humor-absurdo e o fatalismo de Boiling Point, e os momentos de inacção e quietação fornecida pelo agente Mar (ou praia) dados no seu esplendor em Scene at the Sea.
Com uma mestria inclassificável (cada palavra usada para descrevê-la, parece nos distanciar de tudo aquilo que queremos dizer), o cinema de Kitano vai transcendendo as primeiras premissas a que se propunha. Mascarando-se de filme yakuza, Sonatine impõe a sua própria lei a todos os envolvidos (espectadores e personagens), dividindo em três momentos a narrativa. No primeiro, os anti-heróis que disparam quedam-se imóveis, parecendo aguardar que as balas do inimigo lhes trespassem o corpo. Os pedidos desesperados de perdão de um "devedor" à beira da morte não se fazem ouvir nos credores petrificados por um sadismo mudo. Quando um murro é infligido a um dos personagens, ele aguarda que a sua face seja repetidamente desfigurada em ferida. À bestialidade é retirada a sua componente glamorosa, por isso ela torna-se insuportável (e impossibilitada de espectacularizações). Como se a morte viesse já cansada aos que morrem, e aos que ficam lhes restasse aguardar, quietamente, a sua vez. Mesmo neste ponto (enquanto o filme de yakuza é ainda formalmente filme de yakuza), Sonatine mascara-se, nega as regras intrísecas da estética do caos. Para estes personagens crepusculares não há redenção possível: os cortes elípticos nos seus movimentos angustiados provam-no. A sua violência é estática e melancolicamente desesperante, como se através do ar apático, denunciador de um certo desapego à vida, ressoa-se uma necessidade de comunicar. E já sabemos como as palavras são desprezadas na senda de uma estética kitanesca. O corpo contra o outro (e não a favor) poderá ser, assim, o único meio destes continuarem a persistir.
Poucos filmes são assim: compostos única e exclusivamente de estilhaços, pequenos indícios trágicos, silenciosos na sua particularidade, que ao romperem por entre o cenário vazio, se recriam noutra coisa ainda. É aqui que entra a obsessão pela viagem, melhor dizendo, o inaugurar de uma segunda parte, paradoxal à primeira, hermética e simbólica, como eram as cenas já num A Scene at the Sea. Só que se em Scene at the Sea a paixão pelo Mar como que representava uma descoberta dentro do quotidiano (pois ele faz parte da paisagem do dia-a-dia), em Sonatine a praia é um local hierático, que se encontra depois de uma fuga radical, de uma secreta viagem. Neste ponto exacto, as cordenadas mudam. A brutalidade transfigura-se em brincadeira, o tédio de se estar exilado cria o jogo entretido. De repente, a paisagem transmuta os indivíduos. É a partir de aqui, que podemos falar de uma feliz frustração em Sonatine, porque já nada nos faz crer que contemplamos um filme de género. Na praia incomunicável com a civilização, os yakuzas volvidos crianças esquecem o peso da Morte, carnavalizam-na em jogos (seja com roletas-russas falseadas, armadilhas secretas na areia que metaforizam o abismo ou ainda "guerrilhas" com fogos-de-artificio) cuja consciência do perigo é anulada. Porque já nada vale a pena, a simbólica do Mar é também a da origem primordial da vida, uma presença solitária e transcendente que assalta a dormência existencial dos envolvidos. Formalmente, a perícia de Kitano, principalmente no que concerne a montagem, vai-se aguçando nestes instantes: se a elipse brusca reinava na primeira parte (justamente porque se cortavam momentos sem interesse), na praia tenta-se, pelo contrário, prolongar as cenas vazias de conteúdo narrativo, para permitir focar sobretudo, esse sentimento do nada, feliz sem razão nem argumentos, diante da inexplicabilidade e perfeição da Natureza. Relembre-se, apenas, a magistral cena da luta de sumo, pico da arte em Kitano (ainda hoje). Nela os corpos encontram, finalmente, liberdade para se expressarem, enquanto a câmara os filma em fast-forward criando a ilusão de eles mesmos se terem tornado objectos de papel (mais a banda-sonora de Joe Hisaishi, recortando o som natural em música, não sei como tanta beleza é possível...). Forma-se, nesta perspectiva, uma mímica da inocência, impulsionada pelo conceito ritualístico de passagem, este último, representante derradeiro da nostalgia melancólico-contemplativa do tempo perdido: a infância, lugar de verdade espontânea.
Todavia sempre foi Kitano um pessimista, na medida em que as suas fábulas tendem sempre a finalizar mergulhando na tragédia. Se a praia funcionava como subterfúgio do Mundo e da Morte, são esses dois mesmos agentes que regressam, destruíndo o éden prometido, em última análise, puxando a ilusão à realidade. Morrendo o último dos consolos (como se as férias, a partir desse momento crítico, não podessem nunca mais voltar), os restantes sobreviventes tornam a ser os mesmos do começo, enclausurando assim um verdadeiro círculo simbólico cujo fim é a morte. Portanto, a bestialidade regressa em força, com uma melancolia avassaladora: chegámos a essa parte em que tudo perdeu o seu sentido e o mais fascinante é que a câmara filma esse vacuidade com uma sinceridade espantosa (a prova disso mesmo, é a subversão do tiroteiro final). Por momentos, somos esse mesmo Aniki Murakawa estacionado na ravina que dá para o Mar, olhando para o infinito depois do massacre, tomando a decisão de nunca mais voltar a acordar, mesmo com a rapariga estanque naquela estrada assombrosa eternamente à espera do seu regresso. Depois disso, resta-nos apenas vislumbrar o inexorável plano final (o carro de costas, ao longe o céu sem cor, e o bater ensurdecedor das ondas) e esperar que passe, esperar que passe...

Nota: 5/5

Outras Notas:
Pedro Mourão-Ferreira:
5/5
David Bernardino:

3 comentários:

Anónimo disse...

Well done for this wonderful blog.

Anónimo disse...

Gomen kudasai.

Pedro Mourão-Ferreira disse...

Excelente este filme. A simplicidade da realização desta obra torna-a ainda mais fantástica. A luta de sumo será sempre, para mim, uma cena jamais esquecida. Sente-se mesmo a ligação entre este e A Scene At The Sea. Sonatine e A Scene At The Sea são, para mim, os dois melhores filmes de Takeshi Kitano, por serem filmes que por mais que as pessoas tentam, incluindo o próprio Kitano, nunca conseguirão atingir a magia destes dois. Os meus parabéns pela excelente crítica. Só faltava mencionar a cena do adeus à infância que é, de facto, espectacular!