sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Saikaku Ichidai Onna

Título Original: Saikaku Ichidai Onna
Título em Português: The Life of Oharu
Realizado por: Kenji Mizoguchi
Actores: Kinuyo Tanaka, Tsukie Matsuura, Ichiro Sugai, Toshiro Mifune, Toshiaki Kunie, Daisuke Kato
Data: 1952
País de Origem: Japão
Duração: 148 min.
M/12Q
Preto e Branco, Som













Oharu ou os infortúnios da virtude


Todavia, é possível buscar a coerência do espírito humano, cujas possibilidades vão da santa ao voluptuoso. - Georges Bataille, L'Érotisme

Mesmo quando um rio
de lágrimas atravessa
e molha este corpo,
não chega para apagar
todo o fogo do amor.
- Isumi Shikibu (974-1034)

I

Das três grandes cinematografias nipónicas reconhecidas no Ocidente, é ainda a de Mizoguchi que se afigura a mais críptica e assombrada, por se achar, ilusoriamente, haver nada mais para acrescentar. Este problema é desprovido de nacionalidades ou tendências estéticas. Ele é imanente à obra em questão e existe tanto no nosso ponto de vista estrangeirado (de observadores distantes, como bem nos tratava Noël Burch) como na perspectiva original, pois esta dificuldade em falar de Mizoguchi sem recorrer a uma visão holística (ou nacional) que o justifique também se deu, surpreendentemente, em algumas críticas japonesas (muito mais fácil é o consenso à volta de Kurosawa ou, até mesmo, Ozu). Para lá do esteticismo radical (mais próximo de uma encenação teatral do que um visão cinematográfica) malogradamente apontado como categoria primeira, foi e será sempre difícil adjectivar uma obra maximamente coerente, todavia portadora de um não-sei-quê que nos faz recuar, assim que abrimos o nosso “olho crítico”.
Tadao Sato no seu estudo seminal Kenji Mizoguchi and the Art of Japanese Cinema descreve uma daquelas polémicas típicas da crítica japonesa contemporânea ao cineasta: sublinhavam a sua falta total de modernismo. Tal deve-se principalmente, e numa acepção estritamente técnica, ao uso excessivo e incondicional, por parte deste cinema, do plano-sequência (aquilo que Sato denomina de “one scene, one shot”) contrapondo-se às então novíssimas e revolucionárias técnicas da montagem (Eisenstein e a escola russa). A tendência modernista, no que ao cinema diz respeito, era a da psicologia dos fragmentos intrincada no plano que, por montagem, faria surgir um outro. Esta era a dinâmica vital do cinematógrafo: tornar o cinema próximo de uma linguagem imagética autónoma. Eis o que explica claramente o epíteto de reaccionário aplicado por certos críticos japoneses à obra de Mizoguchi. Não há nesta obra qualquer intuito psicológico, no sentido em que, primeiro os humanos são autómatos, prontos a funcionar por metáforas de sentido justificativo. O inverso se passa, e só o cinema pré-moderno (onde se insere, obviamente, uma certa espécie de cinema mudo) conserva esta verdadeira fuga do cientifismo (que já era anteriormente, a força e a fúria da alegoria); esta liberdade de movimentos, expressões e mundo presentificado que apenas o plano-sequência (e, consequentemente, a recusa do plano-contracampo e da montagem significando a colagem total de diversos planos-sequência) pode fornecer ao universo apresentado diante dos nossos olhos.
Esta pode ser uma das razões fulcrais para entender o impasse teórico da obra de Mizoguchi (mas também a de Carl Theodor Dreyer ou Jean Renoir): elas referem um mundo perdido, encerrando uma visão do passado que só brota presentificada no momento em que o filme nos assalta. O facto mais curioso e angustiante é que, mesmo na altura em que foram feitas, estas obras já continham esta verdadeira experiência de perda. Por isso também não se pode evitar as palavras tipicamente religiosas quando se depara com o mundo Mizoguchiano. Não há controlo (pois não há psicologismos intencionais), há, imagens numa sequência real, presenças, imanências.
Relembro apenas a descrição aparentemente obscura de Gilles Deleuze sobre a estilística abrangente de Mizoguchi, que revela precisamente o que se entende aqui por pré-modernismo (estabelecendo um paralelismo ao modernismo confesso de um Kurosawa):

O paralelo Kurosawa-Mizoguchi também é tão corrente como o de Corneille e de Racine (a ordem cronológica está invertida). O mundo quase exclusivamente masculino de Kurosawa opõe-se ao universo feminino de Mizoguchi. A obra de Mizoguchi pertence à pequena forma, como a de Kurosawa à grande. A assinatura de Mizoguchi não é o traço único, mas o traço enrugado, como sobre o lago dos Contos da Lua Vaga depois da Chuva, em que as rugas da água ocupam a imagem toda. Os dois autores manifestam por uma clara distinção das duas formas, antes que pela complementaridade que converte uma na outra. Mas, da mesma forma que Kurosawa, pela sua técnica e metafísica, faz sofrer à grande forma um alargamento que vale por uma transformação no sítio, Mizoguchi faz sofrer à pequena forma, um alargamento, uma extensão que a transforma ela própria. (…) Tudo parte do fundo, (…)” (in A Imagem-Movimento, pp. 255-256)

Um cinema em que tudo parte do fundo (da imagem, da coisa), um cinema do feminino, um cinema das pequenas percepções. Um cinema em vias de extinção ou mesmo extinto.


II

Ao relembrarmos as três heroínas fatais de O Retrato da Senhora Yuki (Yuki Fujin Ezu, 1950), A Senhora Oyu (Oyu-sama, 1951) e A Senhora de Musashino (Musashino Fujin, 1951) deparamo-nos com uma relevante dissemelhança da fatalidade trágica de Oharu. Esta trilogia, imediatamente antecedente à Vida de Oharu, Mulher Galante (Saikaku Ichidai Onna, 1952) apresenta-nos três tragédias que desembocam em três suicídios, aliás, ficou apelidada celebremente a trilogia do suicídio. As protagonistas femininas enclausuradas num sistema social (mas também no que ao amor diz respeito) totalmente unilateral, vêm-se forçadas a escolher quer a morte por desgosto (Yuki), quer a transgressão à ordem social e económica masculina através da morte (Senhora de Musashino) ou mesmo cometendo um suicídio amoroso (Oyu). De facto, Oharu atravessa os infernos e os mais incrédulos infortúnios mas nunca se suicida, nunca decide o fim do seu destino. Em Oharu há uma espécie de tragédia contínua que apenas evoca um estado pós-traumático ou pós-trágico que paira sobre as paisagens e as redondezas, sobre os humanos e as coisas. Parafraseando Deleuze ainda no Imagem-Movimento: “Mizoguchi” (não só, mas também através de Oharu) “atinge o limite extremo da imagem-acção: quando um mundo de miséria destrói todas as linhas de universo e faz surgir uma realidade que já não é senão desorientada, desconectada”. Só que Oharu não se limita a criar e a se evadir da desconexão (ex: suicídio), pelo contrário, ela do princípio ao fim, está imersa num universo de fatalidades cruéis às quais não pode escapar.
Esta que é uma adaptação (fiel mas livre, mas jamais anárquica na sua liberdade) de um clássico da literatura japonesa (sendo a fonte original mais satírica do que trágica) escrito por Saikaku Ihara (1642-1693), continua fiel às origens e aos desenvolvimentos temáticos e às perplexidades sobre o mundo na obra de Mizoguchi. Isto é, “não há linha de universo que não passe pelas mulheres, ou mesmo que não emane delas, e, no entanto, o sistema social reduz as mulheres ao estado de opressão, muitas vezes de prostituição larvar ou manifesta” (Deleuze). O confronto preponderante e tempestivo é sempre essa relação entre o estritamente social (o histórico) e o metafísico (o domínio da possibilidade e das forças do movimento de mudança). Oharu abarca, de forma manifestamente perfeita, estas duas dimensões.
Condenada a amar, transgredindo eroticamente (como tão acertadamente advertia João Bénard da Costa na sua análise d’As Folhas da Cinemateca), Oharu é forçada a abandonar o amor da sua vida (que, Bénard da Costa, apontava como transgredindo socialmente), pois era interdito a um homem amar uma mulher de casta superior. A partir desse momento - equivalente, ao ponto angustiante em que a inocência cândida do primeiro amor se enclausura drasticamente na sua impossibilidade real - Oharu vai de inferno em inferno, das mais altas esferas de poder aos cantos sujos das ruas, caindo na desgraça e envelhecendo até se tornar “numa bruxa”.
Tadao Sato no seu Kenji Mizoguchi and the art of Japanese Cinema igualava a fatalidade de Oharu à inocência de Sónia de Crime e Castigo (Dostoiévski) ou de Katushya de Ressureição (Tolstoi). Não é o caso da comparação ser descabida, mas não posso deixar de concordar com João Bénard da Costa quando se sublinha: “Porque, se Oharu é vítima da fatalidade, num sentido muito amplo ou vítima de fatalidades nunca é a pura jovem inocente, esmagada pela maldade do mundo e pela maldade dos homens. Quanto mais vejo o filme, mais se me impõe o lado rebelde da personagem que, desde muito nova, aceita e escolhe colocar-se em oposição a uma ordem que ela globalmente não contesta, mas permanentemente transgride.” O mote aqui é esta transgressão permanente, quase inconsciente, ou melhor, tão inconsciente quanto a dita fatalidade que nem Katushya, nem Sónia (a prostitua imaculada, típica da literatura russa) possuem. A imagem a comparar será, inevitavelmente (e como Bénard da Costa bem assinalou) a Justine de Sade: “Se há um lado Justine em Oharu, é no sentido, em que ela convoca o «malheur» tanto como a personagem de Sade, caminhando ela também, entre «les infortunes de la vertu»”
Dito e bem, só a transgressão (mas não a do suicídio, a transgressão viva) pode preencher os dois domínios que atravessam a obra de Kenji Mizoguchi, o social e o metafísico. Elas fornecem uma imagem inteira, holística do feminino (vinda do fundo dos pequenos traços) relacionando-se com o masculino, os pobres intercalando-se com os ricos, a vida com a morte ou a perda. É aqui que nasce inevitavelmente um sentimento de sagrado. Em relação a esse aspecto, também Tadao Sato atribuía a Oharu a imagem da prostituta como santa. Se é verdade que no último plano-sequência, Oharu parece finalmente estar liberta da miséria (pela aceitação transcendental da própria miséria), a sensação real é que quanto mais completa (quanto mais dissemelhante, quanto mais transgressiva) é uma mesma existência, mais coerente ela se pode tornar. Oharu é, na mesma existência, santa e voluptuosa e o seu fogo é o fogo do amor, à revelia do(s) rio(s) de lágrima(s).

1 comentário:

Anónimo disse...

Porquê que deixaram de dar estrelas aos filmes?
Apesar disso, o comentário é muito bom e revela muito conhecimento cinematográfico. Continuem assim, mas com estrelas.