sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Salò o le 120 Giornate di Sodoma

Título Original: Salò o le 120 Giornate di Sodoma
Título em Português: Saló ou os 120 dias de Sodoma
Realizado por: Pier Paolo Pasolini
Actores:Paolo Bonacelli, Giorgio Cataldi, Umberto Paolo Quintavalle
Data: 1975
País de Origem: Itália/França
Duração: 112 min.
M/18Q
Cor, Som









Salò , última obra de Pier Paolo Pasolini, baseada no romance 120 dias de Sodoma do Marquês de Sade é a transposição da decadência da moral e da consciência em vícios sexuais depravados na Itália fascista de 1944. Tal como no romance de Sade, em Salò uma elite (nobre no romance, e fascista no filme) organiza um grupo de dezoito jovens (oito rapazes e oito raparigas) enclausorando-os num palácio fechado e assustador donde se prosseguirão orgias, torturas, vícios em nome do prazer decadentista Baudelairiano e deleite irracional e instintivo helénico dionisíaco.
Todo o filme é chocante: o mais dramático e o mais violento que tive prazer de presenciar, a sua crueldade e frieza no tratamento do ser humano provocam revolta ou nojo. Não fosse falar o filme da morte da moral e da consciência. Mas sobre este aspecto iremos referir adiante.
Pasolini cria, assim, um micro-mundo à la Sade com uma verticalidade de carácter Dantesco (veja-se a Divina Comédia e a Descida aos Infernos) no qual se divide o filme: Antinferno, Círculo das Manias, Círculo da Merda e Círculo do Sangue. Cada um tão simbólico como o outro, representando as relações complexas de poder e submissão existentes nas sociedades humanas, sejam elas fascistas ou democráticas. Na verdade, o fascismo italiano é uma metáfora gigantesca para a nossa era: a era do consumo, que transporta um poder que (citando Pasolini) "manipula os corpos de uma forma horrível, que não tem nada a invejar à manipulação exercida por Himmler ou Hitler." As elites governam o povo, abusando e explorando deles até à última gota de sangue. Portanto no que concerna ao sexo, às perversões e manias e ao sadomasoquismo, também elas são metáforas e alegorias. Veja-se que não é o sadomasoquismo em si que representa a intenção final de Salò, esta guarda-se no sentido real do sexo, que para Pasolini, é uma metáfora da relação entre poder e submissão. O sexo representa o que o poder pode fazer ao corpo humano. A redução do corpo humano ao estado de coisa, do tráfico do corpo, ou seja à anulação da personalidade de um em função da emanação de poder de outro.
Quanto ao poder, também o filme é bastante claro: diz o Duque para os seus amigos a determinada altura: "Nós, os fascistas, somos os verdadeiros anarquistas, isto é enquanto estivermos no Estado, porque na realidade, a verdadeira anarquia é a do poder." Um dos temas de Salò é a anarquia do poder, ou seja para Pasolini existe o poder em si, que deseja algo totalmente arbitrário, ditado exclusivamente por necessidades económicas que escapam à lógica ou à razão. Para sermos mais claros, há uma vontade de poder (como refere Nietzsche) em cada um dos seres humanos, e esta qualidade é íntrinseca e instintiva; logo anárquica. Pois o instinto não admite ordem, nem autoridade ou leis sem ser a suas próprias.
Assim podemos falar aquilo que Pier Paolo Pasolini declarava como estando omnipresente no filme, isto é a inexistência da História. Em Salò, os fascistas matam a divisão do pensamento ocidental - racionalismo e empirismo por um lado, e marxismo do outro - substituindo por novos valores alienantes e falsos: aqueles do deleite hedonista e da morte da consciência, resumindo da sociedade de consumo: o que irá conduzir ao que Marx considera como "um genocídio das culturas vivas, reais e precedentes." Por isso os círculos verticais dantescos existentes no filme justificam-se, finalizando-se no Círculo do Sangue, ou seja, no genocídio massificado da cultura humana.
Em Pasolini, o conformismo a tudo o que se disse é um índicio de morte e da anulação de personalidade, provocada pela sociedade - "que destrói a nossa natureza narcísica e rebelde" - metáfora utilizada em Salò na impotência, imponderabilidade e no conformismo dos jovens, que sendo brutalmente castigados, poucos reagem e muitos aceitam (inclusive a morte) os devaneios da elite. Acordando alguns do seu estado de anestesia para pontualmente serem obedientes e denunciarem os companheiros que não cumpriam as regras dadas pelos fascistas.
Salò o le 120 Giornate di Sodoma é um grito de desespero numa sociedade onde o homem não pode ser livre e não pode ter esperança quanto ao futuro enquanto não se rebelar e lutar por aquilo que lhe pertence face à negra e anónima elite hierárquica de presidentes e duques que passeiam e se divertem, desejando aprisionar no palácio cerrado a que chamamos de Mundo, o jovem povo que todos somos.
Quanto a esta denúncia, e para finalizar esta crítica, alguém disse sobre Salò : "Este filme é obrigatório, para todos aqueles que desejam alcançar o estatuto de cidadão."

Nota:

4 comentários:

Anónimo disse...

Verdade, crua e dura

Anónimo disse...

Dionisiaco?

Você não deve saber do que está falando meu caro.

Miguel P. disse...

Penso que sei, caro anónimo. Dionisíaco aparece, pela primeira vez, como uma qualidade estética muito particular (complementando-se e contrapondo-se com o apolíneo) no ensaio de 1872, O Nascimento da Tragédia de F. Nietzsche.
Aquilo que eu escrevi (já há mais de 4 anos) no texto sobre Salò foi uma mera consideração de dionisíaco como qualidade geral e abrangente de Dioniso (algo que não é, de forma nenhuma, o sentido dado por Nietzsche no seu ensaio), isto, é uma libertação pela carne, o sentido orgiástico da palavra que não foi tomado por mim como uma dádiva mas como uma prisão de exploração (é esse o sentido dado por Pasolini à sexualidade e a Sade).
Embora sendo oposta ao sentido Nietzscheano (pois ele não se restringe nem de perto nem de longe ao "Nascimento da Tragédia", sendo essa definição várias vezes re-vista e re-conceptualizada, por exemplo "Para Além do Bem e do Mal"; "Genealogia da Moral" etc.), falar de dionisíaco neste texto (se calhar ainda demasiado precoce e ainda com alguma pretensão de se abarcar tudo ao mesmo tempo, sem a capacidade devida para fazê-lo) foi apenas um significado mais geral daquele que é dado na teoria da estética.

Um abraço e da próxima vez, identifique-se. Responder para o vento, pode ser cansativo.

Anónimo disse...

Crítica genial