quinta-feira, 28 de junho de 2007

Bijitâ Q

Título Original: Bijitâ Q
Título em Português: Visitor Q
Realizado por: Takashi Miike
Actores: Kenichi Endo, Shungiku Uchida, Kazushi Watanabe, Jun Mutô, Fujiko, Shôko Nakahara, Ikko Suzuki
Data: 2001
País de Origem: Japão
Duração: 84 min.
M/18Q
Cor, Som









Visitor Q pertence a uma classe restricta e elitista de obras chamadas de "cinema-infame", isto deve-se, primordialmente ao seu conteúdo, que para além de ser altamente transgressivo (diria neste caso, ilegal em certas circunstâncias e lugares) , usa o exagero - a hipérbole - para passar uma ideia virada para o real. De uma certa perspectiva, talvez num olhar mais franco, esta obra-prima - que usa a imoralidade como meio para ilustrar um fim - acaba por se tornar numa fábula estranhamente moral e moralizante, ou seja, o que Visitor Q pretende realmente é denunciar o tempo em que se insere, projectando essa angústia numa família disfuncional. Uma família desvirtuada, descomplexada e à beira do abismo, onde o pai de família pratica, como se dum gracejo tratasse, incesto com a sua filha prostituta enquanto grava um documentário sobre a decadência da juventude (os primeiros dez minutos do filme). O sexo é tido como algo brutalizado, algo inteiramente alienado por um sadismo deturpador, visto que não é a animalidade (no sentido lato, ou até mesmo bíblico da palavra) que leva as personagens a praticá-lo. Quando a mãe da prostitua - casada com o pedófilo moralista de ejaculação precoce - se vicia em heroína, prostituindo-se também ela de modo a conseguir dinheiro, o que está em questão é a perda das suas funções na sociedade, e no seu próprio seio familiar. O seu filho adolescente, falhado na escola e na vida, depois de ser quase morto pelos seus colegas, espanca-a (a sua própria mãe) de uma forma irreflexiva, violenta e, imortalmente, chocante, deixando-lhe chagas em todo o seu corpo, nas quais se reflecte também (por meio do espelho do seu quarto) a sua irrecuperável beleza e feminilidade.
É neste contexto: crise familiar, monstruosidade nas relações e atrofio dos sentimentos (o chefe de família inclusive afirma: "O que é suposto nós sentirmos?") que esta família - personagem colectiva - se situa num mundo deslocado de referênciais. Até que, se dá a chegada de um estranho visitante disposto a mudar o estado das coisas. Aqui neste ponto, relembre-se aos entendidos (e enuncie-se aos leigos) aquele filme fabuloso de Pier Paolo Pasolini, de 1968, Teorema, donde, justamente, um visitante quebrava com a vida de uma família burguesa, seduzindo sexual e intelectualmente todos os seus membros. Ora, tanto na obra irónica de Pasolini, como na sórdida de Miike, o estranho personagem é tido como um salvador; um emissário de Deus em Teorema, e um sábio em Visitor Q. A cada membro, o convidado ensina uma preciosa lição - ele surge pela primeira vez, lançando, infantilmente, uma pedra, rachando a cabeça do Pather. De seguida reactiva a animalidade adormecida da mãe, numa cena, no mínimo, inacreditável, na qual, ele masseja os seus seios, de modo a prepará-la para a lactação. O filho, observando a sua mãe , recuperando, a pouco e pouco, a sua beleza perdida e o seu estatuto de mulher, - face ao acto de ter reaprendido a amamentar - apercebe-se igualmente que tem de mudar a sua vida. O pai - com a cabeça já muito rachada das pedras lançadas pelo Visitor Q - depois de ter morto e praticado necrofilia com a sua assistente de realização, negando, à frente de um cadáver euforicamente, não sofrer de ejaculação precoce, entrega-se também à redenção, matando com uma faca os colegas que batiam no seu filho.
Como se constatou no princípio, Visitor Q é uma obra de extremos, Takashi Miike usa um meio imoral para fundamentar um fim, apesar de tudo, moral, isto é, validar o paradigma da família tradicional. Os personagens desencaminhados, encaminham-se (perdoem-me a redundância), pela via ou do sofrimento ou do prazer, atingindo os seus papéis mais básicos. Se Shinya Tsukamoto - esse mestre radical na ligação dos contraditórios - visse este filme, com certeza que iria apontar o problema essencial, à luz do seu Tetsuo ou do seu Tokyo Fist (filmes que analisam a mesma problemática de formas distintas) : o que falta no nosso tempo é rencontrar o nosso sentimento mais básico, a nossa função mais primária. E não se fique a pensar - como muita gente pensa - que o tempo presente é o tempo deste rencontro. Apesar de tudo, e este Visitor Q alerta este aspecto, a nossa era é a era do atrofio, da ambiguidade, da perda de papéis e da impersonalidade. Igualmente também se assiste ao fim do contacto com a carne. Esse fim - Tsukamoto explicaria-o face à imersão do mundo humano moderno na tecnologia, na virtualidade - permite aos personagens deste filme procurarem as mesmas sensações, porém, de forma desviante: seja pela via do incesto, seja pela violência física que provoca uma assexualidade, pela prostituição, ou ainda pela necrofilia. Só que, depois do presságio sacralizado pelo convidado sem nome (Q), a família volta donde começou. À boa maneira anarquista de Takashi Miike (e da afirmação proferida uma vez por Tsukamoto: "só se morre para reviver"), o filme finaliza-se com os membros do agregado bebendo o leite dos seios da mãe, como se fosse o acto simbólico, uma espécie de ritual passado perdido há muito no tempo. Juntos, eles voltam a celebrar a carne, a amarem-se, portanto.

Nota:

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