segunda-feira, 26 de maio de 2008

Erosu Purasu Gyakusatsu

Título Original: Erosu Purasu Gyakusatsu
Título em Português: Eros Plus Massacre
Realizado por: Kijû Yoshida
Actores: Mariko Okada, Toshiyuki Hosokawa, Yuko Kusunoki, Kazuko Ikeno, Daijiro Harada, Taeko Shinbashi, Etsushi Takahashi, Masako Yagi
Data: 1969
País de Origem: Japão
Duração: 202 min. (versão longa), 165 min. (versão curta)
M/12Q
Preto e Branco, Som









Na Primavera de Março,
Escapados do Massacre,
Dançamos por entre as flores.
Poema de Sakae Osugi

Disse uma vez Antoine de Baecque que Kiju Yoshida era o realizador extremo do corpo. Termo complexo e movediço para caracterizar um cinema que ultrapassa o mero materialismo redutor, sem jamais obliterar esse mesmo conceito, o corpo figura-se, no cinema de Yoshida, como a única possibilidade humana de interpretar o mundo. Se isso nos vinha sendo já apresentado de maneira imatura nos seus primeiros filmes sob a forma de pequenas narrações sobre a decadência de uma sociedade à beira do abismo (com Good-for-Nothing, Blood is Dry e End of a Sweet Night a encerrarem uma trilogia do spleen, uma espécie de volição defraudada do corpo), o que nos é consagrado nas suas películas seguintes (posteriores a Escape from Japan de 64) é, poderíamos arriscar, uma canonização desse conceito-chave na figura do feminino. São as mulheres dos seus feminisutos Story Written with water(1965), Lake of woman (1966), The Affair (1967), Flamme and Woman (1967) e Affair in the Snow (1968) que trazem os problemas intímos à flor da pele. São essas heroínas que através do seu testemunho subvertem toda a noção do feminino filmado. Como disse Kijû Yoshida a dada altura, não é tanto a questão de neste "quinteto de filmes" se destruirem noções teóricas sobre o Melodrama (tese essa defendida pela maior parte da crítica), mas sim de se representar a mulher per se e não para um outro. O ponto de partida e chegada seria o mesmo (a mulher filmada pela mulher filmada), alcançando-se assim o desprezo total pela audiência, destruição de um certo erotismo forçado, constantemente impingido à mulher captada pelo "olho da câmara", que mais não é do que "olho masculino", mesmo que incoscientemente. Após a tentativa de filmar intimidades (mais uma vez o corpo ressoa como pedra-basilar), Yoshida catapultava o seu cinema para uma nova etapa.
Neste Erosu Purasu Gyakusatsu, Yoshida narra dois tempos numa exposição complexa: o presente e o passado. De um lado, a descrição de um casal de jovens procurando o sentido dos seus impulsos, e do outro a representação de figuras Históricas e o seu contexto político-ideológico na era Taisho (decada 10/20): o anarquista Sakae Osugi e as suas três mulheres (das quais Itto Noe se salienta) que viveram "uma vida de violenta beleza." Ambas se desenrolam numa catadupa hermética e anacrónica. Se é-nos perceptível a cronologia a princípio (já que as duas narrativas estão paralelas, e por isso mesmo, se não confundem), no decorrer tudo se vai homogeneizando, tudo vai pertencendo a um anti-tempo, porque ele não é mais seguimento incontrolável, mas sim hiato de diálogo. Parece, portanto, existir uma espécie de tempo imaginário, um terceiro tempo que desemboca na frustração lógica, redução de tudo pela adição. Parafraseando uma passagem do artigo de Pascal Bonitzer nos Cahiers du Cinéma (#224) sobre a insistência da verticalidade imaginária para ressalvar a incompreensão do real como real : «You will reencounter, at each level of casual and open legibility, barring the linearity from which your reading proceeds, the insistence of a vertical inscription, be it plastic or figurative, syntatic or narrative, which will frustrate every sense and every summary.»
Eros + Massacre é então uma renovação e uma revolução da temática do corpo e do tempo. Aqui, ele já não surge apenas como mecanismo facilmente discriminado (nem como orgão dum erotismo enganador), mas munido de um significado filosófico importante. De facto, é ele o único elo que transfigura o tempo. É só através da carne que se lapida um sentido subjectivo, escravizado, obviamente, pela cronologia (nascimento como o princípio de mim e do mundo, morte como o fim de mim e do mundo), como aliàs, logo de início se predica na divisa «A mãe da mãe da minha mãe não existe». Quer dizer, todo o passado, como transcendente de qualquer compreensão para além do próprio é uma crença, pois inscreve-se num domínio meta-corporal, que transpõe o domínio da prova em domínio do imaginário. Desta base teorética simples nasce um materialismo no sentido lato e não pejorativo do termo, onde se dá a permissão de escavar o tempo que foi em contemplação erguida justamente pela imaginação. Portanto, os personagens Históricos que perfilam são e não-são reais, assim como os jovens contemporâneos a eles e de igual forma o tempo. Caminha-se no reino do delírio, ou melhor, da soma (o "+") do título, que mais não serve do que juntar contrários, numa linguagem fílmica que, sorrateiramente, se faz linguagem poética.
Desta maneira, Sakae Osugi - o teórico perigoso do «amor-livre» - é usado como paradigma na senda da destruição política e social de toda a estrutura mental do Japão transposta numa década de 60 com problemas idênticos: impregnada pela contestação estudantil, pelo terrorismo, e pela descoberta das possibilidades da carne. Através da teoria anárquica (não filiada em partidos, mas na simples convicção filosófica) o que se almeja conhecer é a libertação absoluta que, segundo Yoshida, se concentra na negação total do si-mesmo. Que há um outro em mim, mais verdadeiro e sincero que depois de exposto permite atingir o vazio de mim e, desta forma, me projecta na liberdade absoluta e incondicional. E, todavia, não é exactamente isso que Osugi contesta quando o ouvimos melhor: «Revolution is only the renunciation of self» ou ainda «In love and terror, there is ecstasy.» Mas também é este fio de pensamento anarca que governa a vida transiente dos dois jovens que procuram o corpo (logo, a identidade) numa contemporaneidade que parece ter absorvido os pensamentos de Sakae Osugi. A entrega por inteiro do indivíduo colectivo ao Eros parece minar a estrutura hierárquica japonesa: composta, como bem viu Kijû Yoshida, por Imperador-Estado-Pai. Reduzindo a base (o poder paternal, dando uso ao «amor-livre» destruíndo assim o conceito de família), corrompe-se o sistema inteiro. Essa dissolução do ego e entrega à voluptuosidade, ao amor, permite, ainda mais além, a libertação de toda a infra-estrutura social, política e mental, reduzindo a política a nada. Tal seria essa a concretização prática depois da hecatombe, nos anos 60.
Mas se o ("+") do título significa adição (soma dos contrários, como temos vindo dito) ele próprio esconde um duplo significado. Pois ao Eros segue-se o Massacre (deste modo, alcançando o "+" estatuto de consequência): Sakae Osugi é ele próprio vítima do sistema imperial, acabando por ser assassinado, contrariando o seu poema transcrito no princípio. Todavia, a batalha continua. E a missão dos jovens contemporâneos é mergulhar nas raízes do pensamento revolucionário, fabricando arte (os últimos momentos magistrais do filme). Assim, o passado como mera narrativa torna-se apenas narrativa melhor contada, para um futuro próximo, governado por outros corpos. Talvez o mais fantástico na obra-prima de Kijû Yoshida é que ela não se deixa levar em explicações sistemáticas. O plano final deixa em suspenso o presente (no fundo, o terceiro tempo, e o único que o corpo realmente vive) com uma porta a esbarrar-se silenciosamente, deixando-nos os restos do passado lá dentro, falando para um futuro que ainda se estava fazendo.

Nota: 5/5

2 comentários:

Anónimo disse...

Grande dissertação!
Sem dúvida a mais desafiante e eloquente obra da new wave! O mais genial paradigma dessa nova visão do cinema! Mais ao meu gosto não podia ser!
E sim, aquela musica principal do filme, depois de tanto tempo, ainda me assalta sem avisar! E sempre que ouço/vejo o nome do filme fico com as pernas a tremer! :)
Eroossss plusss [the] Massacreeee!! Medo!!!

Chegará o dia em que o Yoshas terá o reconhecimento devido!!

grande abraço!

http://asian-virus.com/phpBB2/
http://www.youtube.com/CineandStuff

Miguel P. disse...

Mesmo, caro Tf10! Mesmo com retrospectiva e DVD's a nossa "cinefilia" parece estar adormecida!

E agora, cá para nós, falta mesmo é o Heroic Purgatory para o final da trilogia desafiante: Sex and Politics!

Abraço!