domingo, 31 de agosto de 2008

Mishima: A Life in Four Chapters

Título Original: Mishima: A Life in Four Chapters
Título em Português: Mishima: A Life in Four Chapters
Realizado por: Paul Schrader
Actores: Ken Ogata, Masayuki Shionoya, Hiroshi Mikami, Junya Fukuda, Shigeto Tachihara, Kenji Sawada, Gô Riju, Yasosuke Bando
Data: 1985
País de Origem: Estados Unidos da América
Duração: 121 min.
M/12Q
Preto e Branco/ Cor, Som








Mishima: Sangue, clarão e eros.

I - Beleza

A beleza é uma coisa terrível e assustadora. Terrível porque inapropriável e incompreensível, porque Deus povoou este mundo de enigmas e mistérios. A beleza! São as margens do infinito que se aproximam e confundem, são os contrários que se unem na paz! (...) O mais terrível na beleza não é ser assustadora, é ser misteriosa. Nela, Deus luta contra o diabo e o campo de batalha situa-se no coração do homem. - Dostoiewski, Os Irmãos Kramazov.

Tudo o que eu desejo é beleza. - Yukio Mishima

Na extensa obra (literária, dramática e até cinematográfica) que Yukio Mishima nos legou ressaltam inquietações evidenciadas por um esforço de coerência autoral e pessoal que atingiram proporções raras. Mishima é daqueles escritores que escreve a vermelho, isto é, com o seu sangue em cada linha, catapultando a sua vivência em abstracções purificadas de si-mesmo. Cada palavra é a sua necessidade de alimento para unir as contradições num todo: carne e mente, feminino e masculino, mas sobretudo, arte e acção. Os seus escritos são espelhos que desaguam em máscaras, e máscaras que criam outras numa remitência demiúrgica para uma autenticidade que, acima de tudo, se esconde do mundo. Ela não necessita do mundo, ela é o mundo, nesse secretismo primordial.
"Todos dizem que a vida é um palco de teatro, mas poucos são os que ficam obcecados com esta ideia, pelo menos tão precocemente como eu fiquei. Desde os últimos anos da infância que eu estava firmemente convencido de que assim era e que eu próprio teria um papel a desempenhar nesse palco, sem nunca ser obrigado a revelar o meu verdadeiro eu." (in Confissões de uma Máscara, Lisboa, Ed. Assírio e Alvim, 1998, pp. 111).
Mishima desde criança deseja ser esse actor que, terminada a representação, corrido o pano, tiraria a maquilhagem para que ninguém pudesse enxergar o seu verdadeiro rosto. É a sua ficção dividida em outros "eus"que restitui esse fingimento artístico de um autor que reage à beleza em duas noções fascinantes. Vejamos o célebre diálogo de Templo do Pavilhão Dourado:
"- Era tão pequeno como isto e cresceu tanto, preenchendo o mundo como tremenda música. Esse é o poder da beleza eterna. Envenena-nos. Bloqueia as nossas vidas.
- A beleza é como um dente podre. Roça na tua língua, magoando, insistindo na sua importância. Finalmente, vais ao dentista e tiram-to. Depois, vês o pequeno dente ensanguentado na tua mão e dizes: "Afinal, era apenas isto?"
Em cada sentido diametral de beleza existe essa incontornável passio (paixão, ou seja, sofrer). Ora o crente ora o cínico concordam quanto ao estatuto da beleza como um incógnito ilusório que assalta as suas vidas. Como esquecer essa dimensão no final do Templo do Pavilhão Dourado ou na vida de Mishima? Se queremos começar por algum lado no que concerne o corpo artístico de Mishima, a primeira revelação da beleza afigura-se como essencial num personagem que nunca deixou de estar apaixonado pelo belo e sublime, nesse misto de plenitude e amargura, nesse mistério aterrador inexplicável (como já contemplava
Dostoiewski).
"Nesse dia, no preciso instante em que os meus olhos se encontraram com a imagem, todo o meu ser se pôs a tremer de uma alegria pagã. O sangue fervilhava-me, os rins, inchavam-me como sob efeito de cólera. A parte monstruosa do meu ser, prestes a explodir, apenas esperava que eu me utilizasse dela com uma violência que até aí me era desconhecida, e censurava-me a ignorância, palpitando de indignação. Inconscientemente, as minhas mãos iniciaram um gesto que jamais lhes fora ensinado. Senti um não sei-quê de secreto e radioso lançar-se ao ataque, vindo do mais fundo de mim. E de repente, aquilo jorrou , ao mesmo tempo que o meu corpo era agitado por uma convulsão alucinante." (in Confissões de uma Máscara, Lisboa, Ed. Assírio e Alvim, 1998, pp. 56).

É na descoberta desta estranha reacção a outro tipo de beleza que a vida de Mishima se divide num conflito de duas ordens, ambas com o mesmo peso. Como diz Dick Wagenaar e Yoshio Iwamoto no seu artigo Yukio Mishima: Dialectics of Mind and Body, a questão essencial de Mishima é "to establish one's existence either within the confines of mentality or to do so within the confines of physicality". O mesmo objecto está lá: quer seja pela caneta ou pela espada, é sempre a beleza que faz Mishima reagir. Adorar a beleza em todas as suas manifestações possíveis e impossíveis, é esse o seu modus vivendi.

II - Arte, III - Acção

Mas foram as palavras que primeiro surgiram. O advento do dito e do escrito afigurou-se essa sua primeira concepção de vida. Viver pela sua arte, distante do reinado da acção, criando naquela esteira da mente racional que não necessita de corporalidade. Desde cedo se enganou, e embora "as a writer, commitment to words was the sine qua non of his being (...) words, he complained, falsified a pure experience of phisycality's ultimate reality . As a result, Mishima said "men end up by coming into contact only with shadows." (Yukio Mishima: Dialectics of Mind and Body).
No ensaio que acabámos de citar, escolhem-se duas passagens decisivas de Sun and Steel que reforçam as dialécticas presentes: mente e corpo, arte e acção, palavras e sentimentos:

"My mind devised a system that by installing within the self two mutually antipathetic elements - two elements that flowed alternately in opposite directions - gave the appearence of inducing an ever wider split in the personality, yet in practice created at each moment a living balance that was constantly being destroyed and brought back to live again. The embracing of a dual polarity within the self and the acceptance of contradiction and collision - such was my own blend of "art and actions". (Sun and Steel, p. 49)

"One may well ask if it is possible for anyone to live in this duality in practice. Fortunately, it is extremely rare for the duality to assume its absolute form; it is the kind of ideal that, if realized, would be over in a moment. For the secret of this inwardly, conflicting, ultimate duality is that, though, it may make itself constantly foreseen in the form of vague apprehension it will never be put to test until the moment of death". (SS, pp. 51)

IV - Harmony of Pen and Sword

Se todo o corpus artístico de Mishima necessita biografia para se prevalecer como unidade (dialéctica de arte e acção, como temos vindo anunciando), então o grande filme de Paul Schrader não é só um filme sobre a vida de Mishima, mas é igualmente uma viagem siderante arquitectada por uma obra que constrói a vida, e uma vida que constrói a obra. Os personagens são Mishima e Mishima é os personagens. O filme é todo ele, imensamente dialéctico numa progressão obvia de maturidade. E é por essa complexidade absolutamente louvável que não pode haver outro esforço melhor em construir as múltiplas faces do autor da Tetralogia do Mar da Fertilidade.
A última cena acertadamente comprova os intuitos do projecto da vida de Yukio Mishima. Se o momento da morte é o único em que o Homem tem a oportunidade de se unir para a eternidade, é isso que legitima o suicídio de Mishima, não como espectáculo de um exibicionista, mas como apoteose máxima da pureza e honra.
Fornecido de beleza (ela é o expoente da beleza), o último trecho do filme comprova:

"Body and Spirit have never blended. Never in physical action had I discovered the chilling satisfaction of words. Never in words I experienced the hot darkness of action. Somewhere there must be a higher principle which reconciles art and action. That principle that ocorred to me was death. The best operatic atmosphere where there is no oxygen is surrounded with death. To survive in this atmosphere man like an actor must wear a mask. My mind was at ease. My thought processed lively. No movement. No sound. No memories. The close cockpit and outherspace were like the spirit and body in the same being. Here, I saw the outcome of my final action. In this stilness was a beauty behond words. No more body or spirit, pen or sword, male or female. Then i saw a giant circle coiled around the earth. A rehalm that resolved all the contradictions, a rehalm vast than death, more fragrant than anything ever known. Here was the moment I always have seek."

Nota:
5/5

2 comentários:

Anónimo disse...

Uma peça muito artistica e visualmente deslumbrante que acabou por explorar a vida e as complexas "teorias Mishimianas" de forma pertinente e equilibrada!
À excepção do The Temple of the Golden Pavilion, não conhecia a fundo as outras duas abordadas no filme mas lembro-me por exemplo de ficar particularmente impressionado com a Kyoko's House, no 2º acto (Arte) se não estou em erro, com aquela noção de morrer no auge da beleza!! OMG!!

Tenho de seguir o teu conselho e explorar o estimulante mundo literário do Mishas!


abraço!

pvieira91 disse...

Boas,

Muito boa critica, muito concisa.

Passem por http://ptcv-movies.blogspot.com

somos um projecto idêntico ao vosso, mas ainda estamos em iniciação.
Precisamos de criticos!!

Cumprimentos