terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Bara no Soretsu

Título Original: Bara no Soretsu
Título em Português: Funeral Parade of Roses
Realizado por: Toshio Matsumoto
Actores: Peter, Yoshio Tsuchiya, Osamu Ogasawara, Shotari Akiyama, Kiyoshi Awazu, Emiko Azuma, Toshiya Fujita, Don Madrid, Masahiro Shinoda, Toyosaburo Uchiyama
Data: 1969
País de Origem: Japão
Duração: 107 min.
M/18
Preto e Branco, Som








All definitions of cinema have been erased. - Personagem citando Jonas Mekas

Já o nosso amigo poeta Jorge de Sena apontava as condições para se exercer a poesia, numa dicotomia no minímo pavorosa: "ou (se) era prostituta, dando à cauda, entre as madamas; ou monstro solitário, rangendo os dentes na treva"(Carta a um Jovem Poeta). Mas, qual é a verdadeira condição do fazedor de filmes? Certamente essoutro criador de imagens, seja ele um flautista de sonhos distantes, seja um geómetra da realidade tem tendência para caír na agonia do primeiro lugar. Como pensar cinema sem um espectador? Sem a finança que dá o comer a todos os envolvidos e que, ela mesma, condiciona, de forma ou de outra, a sua estilística, apresentação e temática? Apesar de tudo, trata-se de uma profissão. O cinema é uma arte no limite da indústria ou uma indústria no limite do artístico, não é uma coisa nem outra, mas sim as duas. E o seu segredo está na conciliação do irreconciliável (diríamos como uma feitura de tautologias paradoxais). Todavia, existem aves raras no meio da bruma que envolve o significado da arte da luz (ou luminosa?) e parece-nos mesmo que, ao serem contempladas (e apenas contempladas), essas obras fortuitas nos assaltam com uma fugacidade criativa originária, como se tivessem sido apenas pinceladas ou vomitadas instantaneamente e não construídas, take a take, cena a cena, falsificação a falsificação. Assim, o cineasta pode parecer subjectivamente um monstro solitário que filma como quem respira, que cristaliza uma representação como quem, no fio da navalha, escreve um poema. Porque o publicou, então, se isso é justamente apenas mais um suspiro, entre os muitos outros dados por necessidade? Porque nada disto é respirado no plateau in loco, mas sim quando as ideias nos assaltam e o autor é forçado a organizá-las.
Mas o caos deve ser a palavra que corta o silêncio em Funeral Parade of Roses: uma simbiose entrecotada em planos que senão são dadaístas, pelo menos tem muito de iconoclasta e de "open-minded art" na esteira "hippie" e logo libertária de reflectir. Um manifesto circular sobre si mesmo, cujo ritmo surge na busca de uma estética ilusória de respiração/inspiração. De termos dialéticos, que se refutam, mas que jamais se excluem, antes se complementam (a comédia e a tragédia, o som e a imagem, dançando num só corpo). O filme de Matsumoto não engorda a sua fasquia intelectual com divisas estranhas para um cinema que apagou toda a definição primordial (jamais poderiamos ouvir aqui que o "Cinema é a verdade vinte e quatro vezes por segundo"), embora o seu documentalismo seja uma evidência (quanto mesmo na sua tentativa - que não é uma ambição - de dar a conhecer ao mundo a subcultura homossexual japonesa). O seu documentalismo que recusou a realidade e a ficção, que quebrou esse litígio com uma labareda chamada Montagem e submete tudo isso à indefenição à priori, pois nunca se sabe o que vem a seguir nesse filme bizarro de travestis complexados edipianamente.
Um cinema assim aparece-nos, ousamos crismar, como que algo de espontâneo. Divorciado de qualquer raíz que o prenda à formalidade (ao politicamente correcto) este é um filme-soluço, que assalta quando menos esperamos. Tão pós-moderno, tão autenticamente niilista que pode cair no risco de se anular, dentro do descrédito total que o próprio constantemente impinge como se de um castigo se tratasse. O seu avant-gardismo passa também por misturar drama-pessoal (Eddie interpretado pelo travesti real, Peter), com situações de paisagem (as questões políticas, sociais e mentais) sem constragimentos nem pudores: deve-se mostrar tudo, não porque essa é a realidade mais real (a jóia no meio da porcaria), mas porque tudo pode ser, justamente estetizado, cristalizado em beleza. Assim, no nosso horizonte interpretativo, poder-nos-ia surgir o estilo panfletário do filme consciência, que quer mudar a massa. Ora, não são nos jogos constantes entre sequência e corte que essa dimensão aparece, nem existe uma significância moral na narrativa, complexa no seu seguimento cronológico, mas nunca na sua essência efectiva. Não se deve pensar, igualmente, que a transposição contemporânea da tragédia grega Édipo Rei de Sófocles num Japão subcategorizado na ambiguidade sexual do protagonista, funciona como mecanismo representativo da noção clássica de tragédia (como aquela que nos aponta a condição humana). Nisso (e noutras coisas ainda), Funeral Parade of Roses é bastante directo. A referência Édipo Rei está presente, como estão presente os "piscares-de-olho" à situação em Cuba (com um personagem chamado Guevara), à cultura pop, ao noticiário nipónico, aos filmes da moda (a batalha dos travestis contra as mulheres "sukeban" relembram os filmes de Meiko Kaji) e muitos outros. São referências susceptíveis de serem apropriadas num turbilhão caótico, desorganizado, perdido de referênciais e de coerências lógicas (e nada de promiscuidades).
Todavia, o esforço titânico do cineasta que respira cinema ainda não findou. Com o seu público afastado (não há cedências para ninguém) o homem da câmara de filmar ( tal e qual Dziga Vertov ) continua a sua desconstrução formal e temática como quem a cada fotograma experimenta a falsidade de tudo isto. Aproximamo-nos do monstro que renegou o seu estado de prostituta? Talvez, ou talvez não. Parafraseando Godard, "O Cinema é a mais bela mentira do mundo". E isto ainda é mais verdade, quando não ignoramos o seu estatuto de falsidade. Quer o autor relembrar-nos disto a cada cena falhada, rascunho rabiscado do que poderia ter sido um filme normal, para fazer chorar ou dançar o público? Uma tele-novela? Pois bem, é quando o artista diz não que, a cada passo, o realizador se aproxima do monstro cujo dia virá, não precisar de fazer mais filmes. E voilá, isto é anti-cinema, caros amigos.

Nota:5/5

Outras Notas:
RMC: 3/5
David Bernardino: 3/5
Pedro Mourão-Ferreira: 5/5

1 comentário:

Anónimo disse...

Já vi que andaste a impingir aos colaboradores do blogue esta obra terrifica do Matsumoto! :)
Agora trata de obrigar o visionamento da sua outra obra-prima, o bélico "Shura"!!!

nice work! :)