segunda-feira, 14 de maio de 2007

Kôrogi

Título Original: Kôrogi
Título em Português: Crickets
Realizado por: Shinji Aoyama
Actores: Kyoka Suzuki, Ayumi Ito, Tsutomu Yamazaki, Masanobu Ando
Data: 2006
País de Origem: Japão
Duração: 102 min.
M/12Q
Cor, Som









Kôrogi (Crickets) é o começo de algo novo e refrescante na obra de Shinji Aoyama. Deixa-se aqui (pelo menos em parte) o tema da doença, do pós-modernismo, da obsessão pelo fim da vida através do suicídio, mas não se esquece a relação típica dos seus filmes da existência dum "problema" e seu "contorno". As personagens de Crickets ainda continuam a viver num isolamento acutilante, ainda não deixaram de se fechar em si próprias como sinal de manifesto por um apaziguamento final. E por isso mesmo este filme mais recente de Aoyama relembra-nos, mais do que nenhum, Yûreka (Eureka): quer seja na relação silenciosa das personagens e dos ambientes, quer seja, esteticamente, pela exuberante fotografia de um ruralismo incógnito mas belo. Só que, curiosamente, em Crickets nada nos parece japonês, a não ser os actores e o típico silêncio complexo prefigurado, também ele, em poemas Haiku. Tudo o resto - ambientes, comida, casa, floresta, bares e ruelas - nos parece demasiado Ocidental. Mas uma estética ocidental que se perdeu há muito no tempo. Talvez seja esta uma nostalgia de quem nunca presenciou, mas que, em grande parte, imaginou os locais e a acção dos filmes de Manoel de Oliveira, João César Monteiro, ou, mais recentemente, Pedro Costa , isto é, que, na verdade, este Kôrogi tem o seu quê de português. Aliás, Shinji Aoyama aquando da sua passagem pelo festival de cinema Indielisboa disse esta afirmação deveras estranha: "Eu realizei este filme para vir a Portugal". Mas quanto a isto já nos explicamos melhor.
Logo no início da película, uma voz conta a história de missionários portugueses cristãos que tinham ido evangelizar o Japão na primeira metade do século XVI. E logo depois, escondendo a maneira como se começa, introduz-se a narrativa principal: uma mulher de trinta e poucos anos vive dependente de um velho surdo e cego, numa casa ao pé da costa num cenário, que como já referimos, relembra mais Portugal do que, propriamente o Japão. A sua relação é silenciosa e complexa: por vezes, parece-nos cruel o tratamento - que só se pronuncia por esgares e gestos - de Kaoru ao velho homem. As cenas à mesa, os jantares em que ambos comem com as mãos, se sujam e se limpam com a língua são mais ternurentos do que eróticos. Nunca no filme se percebe as razões de Kaoru para se isolar com aquela personagem caricata. Ao contrário dos outros filmes de Aoyama, aqui em Crickets não existe a denúncia de um problema, admite-se a sua possibilidade e mascara-se isso com a sua própria indefenidade. Kaoru sempre nos surge como uma mulher instável, que espera que algo aconteça, observa a realidade e aguarda que alguma coisa lhe permita "contornar" esse seu "problema" - sendo que nós não o conhecemos - e a faça viver o "depois" (isto referindo-me à retrospectiva de Tamaki Tsuchida). É quase como se aquela relação com o velho monstro (isto porque a simbólica do filme - análoga à fábula da Bela e do Monstro - diz-nos para não fiarmos nas aparências) fosse um teste para ela; uma relação em que Kaoru, diga-se, tem dúvidas se vai resultar.
Entre personagens estranhas - dois habitantes da aldeia que contam o passado sangrento desta - e momentos oníricos ou surreais, o velho homem acaba por desaparecer olhando para a Lua. E aí o mundo de Kaoru desaba. A busca por essa esperança continua e a saudade - esse sentimento lusitano muito bem ilustrado neste conto japonês - impera na desolação e, também, na própria loucura da mulher. Há visões e premonições catastróficas, há um sentimento do vazio a partir daqui, quando Kaoru se apercebe que o motivo pela qual ela vivia - essa sua dependência espiritual - morreu - tanto metaforica como materialmente. Só que a surpresa é que, no final de contas, após um teste decisivo no qual surrealismo lynchiano e absurdo de Beckett se unem, a velha personagem - que logo aqui assume uma dimensão mitificadora e simbólica - volta numa tarde de nevoeiro por entre o mar e a terra.
Aoyama também referiu ser esta uma película que fala de Sebastianismo. Duma profecia necessária no nosso tempo, porém é como se Kaoru recebesse a sua recompensa no final de uma luta, acima de tudo, espiritualizada entre a fé e o palpável. O cego sem nome retoma a visão e a audição - sentimentos que antes, como um errante, procurava - , e regressa, tal como o nosso rei tão aguardado numa cena magistralmente bem filmada que não divide o mito da realidade, o metafísico e o físico etc. A necessidade da crença, da fé toma uma enorme relevância neste filme que, às tantas, cita uma oração presente numa película de Pedro Costa. A revisitação de uma dimensão religiosa na actualidade e também da nossa cultura portuguesa afigura-se precisa de um realizador como Shinji Aoyama que se auto-caracterizou já como "um japonês que foi português noutra vida."

Nota: 3/5

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