sábado, 1 de setembro de 2007

João César Monteiro



Nome: João César Monteiro
Profissão: Realizador, Argumentista, Cinéfilo, Filósofo, Actor (se bem que é mais do que isto tudo)
Data de Nascimento: 2 de Fevereiro, 1934
Data de Falecimento: 3 de Fevereiro de 2003
Naturalidade: Portugal
Filmografia (Curtas e Médias-metragens assinaladas com *):
Sophia de Mello Breyener Andresen (1969)*
Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço (1970)*
Fragmentos de um Filme-Esmola ou: A Sagrada Família (1972)*
Que Farei com esta Espada? (1975)*
Amor de Mãe (1975)*
Os Dois Soldados (1978)*
Veredas (1978)
O Amor das Três Romãs (1979)*
O Rico e o Pobre (1979)*
Silvestre (1982)
À flor do Mar (1986)
Recordações da Casa Amarela (1989)
Conserva Acabada (1990)*
O Último Mergulho - Fragmento de um Filme (1992)
Passeio com Johnny Guitar (1995)*
Lettera Amorosa (1995)*
O Bestiário ou O Cortejo a Orfeu (1995)*
A Comédia de Deus (1995)
Le Bassin de J.W (1997)
As Bodas de Deus (1998)
Branca de Neve (2000)
Vai E Vem (2003)


A César o que Julgo de César
por Vitor Silva Tavares

Condenado a mito ambulatório desde os verdes anos (com Fernando Lopes a crismá-lo de "Rimbaud do cinema português"), depois a ele afeito por efeito heteronímico, João César Monteiro prime na sua cinematografia indígena uma impressão digital apenas elidida por meninges adoradoras do Belo e do Sublíme - como já as expectorava o Dostoievski da "Voz Subterrânea". Sobre tais luminárias abate-se então o meteoro, um ente duende (doente?) de outras estratosferas. E nada de promiscuidades.
Dos fazedores-de-filmes (que os há hábeis, quiçá estrelados de "indispensáveis") distingue-se ele - ego tarzan a endoidar por tão esquelética figura - como porventura único Autor inteiro, com olho próprio (azul e enganador, tal o sol de Mikhalkov), léxico próprio, obsessões e teimas, tiques, truques próprios de demiurgo, leia-se, artífcie: tanto no escarnho & maldizer, rasante, como nas cruas licenciosidades; tanto nas incursões, citações, assimilações eruditas como nas bujardas populares; e tanto nas luxúrias profanas, tidas por obscenas, como nos repentes ascéticos, já que a carne é fraca e a alma é eólica. Deus (João de) e o Diabo encontrando-se os dois à esquina a dançar num corpo só.
Amiúde fracturados, irritantes mesmo na sua descarada descompustura ("eu não percebo nada de cinema", exclamava amiúde, como um primitivo que só se queria em estado de graça), os filmes e ameaços de filmes que semeou a talhe de mendicâncias e titânicas, tirânicas exigências formam, à revelia de acidentes e incidentes desde logo incorporados no próprio agir da criação, um corpus vai-se a ver coeso pois que identitário: tal se diz "isto é Picasso" igual se diz "isto é César Monteiro". Para que não haja confusões: a espiolhagem crítica, como a adesão ou o repúdio, terão sempre de assentar nesta evidência substantiva.
Cinema de Autor e sublinhado, em sua polifónica orquestração: nele se entrelaçam o artíficio teatral - a sua distância anti-naturalista e a-psicológica, historicamente modernista - a majestade operática, o cânone formal assente no despojamento e na linha de risco dos hieráticos palnos-sequência e o requebro literário, "salgado" e voluptuoso, dos scripts. Aptece dizer que os filmes do César são mais "escritos" (ou "escritas") do que as suas representações, ou ilustrações audiovisuais: há que "ler" os seus planos (a essência que lhes mora - radicalmente poética e, como tal, radicalmente política) mais do que olhá-los em contemplação "estética", esta não raro contrariada pelo Autor, se com azeites.
Sendo cinema feito em casa, quase se não sempre precário em termos de produção (assim ele desejava, leve, despida q.b. da parafernália tecnológica de espanta-tolos), certo é que se afasta dos imediatismos "jornalísticos" e dos modelos narrativos de consumo corrente para mergulhar mais solto e mais fundo no próprio magma cultural da "fermosa estrevaria" (Cavaleiro de Oliveira dixit), primeiro intestinando-o, depois expondo-o (expondo-se) em convulsões de abjecção contrapontadas por um como que pudor, uma utopia amorosa (de um Novo Mundo Amoroso) que mais lhe acentuam a agónica dramaticidade. Cuidados de higiene e maquilhagem para lustro de acomodados, viste-los: sonâmbulo da Razão, João de Deus-Nosferatu emerge do esgoto e irrompe na cidade empestada.
O continuum da obra de César Monteiro é assim uma viagem ao fundo da noite, em crescendo exasperada (e exacerbada) e por isso nunca salvífica, antes escatológica: em tudo o que implica de oligarquia económica e empanzinamento culturalista, o torniquete social não deixa margem para amanhãs cantabiles, e o cineasta (o poeta), esse, nem no seu puxavante egocentrismo encontra redenção. O cenário imaculado (branco de gesso) do final de Le Bassin de J.W - filme negro entre os demais, bem mais negro que o falso negro do rutilante Branca de Neve - lá terá de ser conspurcado pela sombra da memória do nazismo, tornada presente e, pior, ominpresente.
Nos seus poemas-espelhados-filmes (e cada qual deles se compondo, descompondo, justapondo, recompondo em sinuosa trajectória para almejar ficar de pé e garantir um sentido, se não entre risos um aviso à navegação) não é apenas a panóplia das fraquezas e misérias do homo lusitanus - os ardis e alibis forjados para calar a fomeca ancestral, as fantasias e estratagemas necessários ao já-agora duma sexualidade desde sempre reprimida, o fazer das tripas coração e do coração uma mania de grandeza - que ele escalpeliza e questiona: em ruptura ou arrimo dialéctico, o Autror lá vai buscar aos cultos fundadores, pagãos e religiosos, da arraia-miúda por aí esquecida (Veredas, Silvestre) como que um amparo ontológico e uma arquitrave de sabedoria necessariamente não-contaminada - breve parêntesis que a aragem do 25 de Abril lhe consentiu no quadro geral duma condição humana gradualmente degradad, e degradante.
É que havia um porta-aviões americano no Tejo, prenúncio da Ordem e da Estabilidade e convite ipso facto para um último mergulho. E houvera a ácida caldeirada d'A Sagrada Família (Fragmentos de um Filme-Esmola), em que o Autor metera colher para remexer equívocos e contradições daquela burguesia ansiosa de liberdades - e dos seus travões: mistela Ponge, Joyce, Breton como acepipes para outra culinária, paladares mais esquesitos. Funâmbulo, o cineasta bem se escuda na parelha do palhaço rico-palhaço pobre para esconder o amargo da boca e, no voltear gracioso, ferrar o dente onde não pode.
Mas se lírico ainda, ou educando sentimental, vagabundo celeste, no Paris-em-Lisboa dos Sapatos de Defunto (notória a influência sobretudo godardiana dos cinéfilos rapazes da "Nouvelle Vague"), César Monteiro vem a afinar a pontaria precutante - "sou lúcido, merda!", poderia exclamar idêntico ao outro fingidor - e iludir a irrecusável propensão idealista através das máscaraas facetas, luceferinas, dos heterónimos com quem afirma farsas e comédias - das Recordações da Casa Amarela, círculo do inferno, às Bodas de Deus, haja alegria.
Em princípio asfixiado no colete-de-forças judaico-cristão e emparedado culturalmente na tradição "humanista" greco-romana (salpicam-se os referentes em toda a obra), bem se esforça, bem esperneia, por assentar nos avatares surreais, ou surrealistas menos o forumlário académico, os campos magnéticos da plena respiração. Anseia então moral, ou probidade ética - não se cansa de exaltá-lo - naquela amoralidade que, na esteira de Nietzsche assassino de Deus, está para além do Bem e do Mal, que não tem caixa registadora nem pede quota a prosélitos. é nisso, de facto e de jure, um iconoclasta face aos códigos, sejam eles os do "cinema". Um terrorista pedagógico. A câmara de filmar serve-lhe de lança-misseis. Ou, se curto o alcance, ao menos de fisga. Sempre aleija.
Frustrado o que seria o seu crime perfeito (encenar Sade, ou seja, absolver Sade do sadismo e dá-lo a ler, a ver, como filósofo revolucionário) desvaria, esquizofreniza-se, desce ao breu a petiscar luz de braço-dado com o "idiota" Robert Walser (ou: da candura como arma de arremesso) e daí, do nó cego, da coragem suicidária, do limite último, da recusa compulsiva em subordinar a exesege espiritual às leis da pornografia audio-visual, encontra forças - que força é essa, Amigo? - para a síntese, o obstinado rigor de Vai-e-Vem, pura cristalização do impuro.
Malvisto (mal visto) e maldito (mal dito) João César Monteiro - a sua fatal singularidade num país de espertos - revela na obra agora aberta, no mosaico dos seus fulgores e destemperos, o fôlego, o sopro, por vezes o arrepio genial e genicoso que o tornam - ai dele! - o cineasta português romântico por excelência, aqui, onde o romantismo, longe de ser liberal e democrático, se confina à dramática condição umbilical, se bem que insubmissa. A vermelho fogo e negro acrata.
O seu cinema, como toda a vera poesia que se quer intragável a boquinhas doces, só merece o ódio ou a paixão. Verdade se diga: ele não o quis por menos.

(Texto publicado no folhetim da edição DVD do filme Branca de Neve)

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