sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Kikujiro no Natsu

Título Original: Kikujiro No Natsu
Título em Português: O Verão de Kikujiro
Realizado por: Takeshi Kitano
Actores: Beat Takeshi, Yusuke Sekiguchi, Kayoko Kishimoto, Yuko Daike, Beat Kiyoshi, Great Gidayu, Rakkyo Ide
Data: 1999
País de Origem: Japão
Duração: 121 min.
M/12
Cor, Som








O “Kitanesco” n’O Verão de Kikujiro

Kikujiro no Natsu (O Verão de Kikujiro, na nossa tradução) foi lido e revisto pela massa crítica sem grande surpresa como as férias cinematográficas desejadas de Takeshi Kitano depois da ovação mundial de Hana-bi. A crítica de maneira maciça apontara, na sua estreia, o carácter contra-corrente e contraditório da sua imagem de marca. Aparentemente pacífico e humanista, o nono filme de Kitano substituía um mundo de violência estanque pelo felizardo e clássico (muito clássico) par chaplinesco: vagabundo desajeitado e garoto inocente. O Verão de Kikujiro era, assim, um filme a fazer-se para provar uma suposta versatilidade de um realizador supostamente com poucas provas dadas nesse aspecto.
Duas imprecisões sobrevêm dessa interpretação meio tosca da crítica em geral. O primeiro diz respeito às férias e o outro a um certo tipo de humanismo, classificado no contexto deste filme ser como uma “Straight Story” de Kitano. Nem uma, nem outra fazem sentido quando confrontados com a crueza kitanesca dos seus primeiros filmes (falamos, com certeza, de Violent Cop (1989), Boiling Point (1990), Scene at the Sea (1991), Sonatine (1993) etc.). O facto é que até Kikujiro ( e excluindo irremediavelmente Getting Any? por razões óbvias), Kitano filmou sempre histórias simples, meio “road-movies” possíveis, meio exercícios de estilo inovadores. Mas o que caracteriza o kitanesco, na sua profundidade estilística, é o desvendar inócuo da montagem (o editing do filme) de tal forma crua, que esta nos encaminha para a ambiguidade da reacção: a dormência das caras paralisadas a olharem para o fundo da câmara, essa inexpressividade na fronteira do dizível.
De facto, as Histórias Simples de Kitano não são somente elegias à simplicidade, mas antes odes à crueza. Porém, não no sentido neo-realista do termo. A crueldade do simples não é aqui o real mais real captado pela câmara nem serve, tampouco, para denunciar um certo grau de “realidade” maldita. Há, pelo contrário, uma encenação dessa crueza (não uma exploração livre dela), uma escolha estética radical que se revela ao espectador. Tal crueza formal e temática no limite rememora aquilo que Fernando Pessoa referia sobre a obra de Mário de Sá Carneiro quando afirmava que ela era “atravessada por uma íntima desumanidade, ou melhor, inumanidade: não tem calor humano, nem ternura humana, excepto a introvertida.” O mesmo se poderia classificar no kitanesco: a sua inumanidade é, acima de tudo, o pudor da introversão. O próprio Takeshi Kitano numa entrevista sobre O Verão de Kikujiro dizia que a timidez das suas personagens eram fulcrais, que elas eram como um pai, no sentido em que se gosta mais dele à medida que o tempo passa.
A crueldade assim ligada inextrincavelmente à timidez e ao pudor, aproxima todo este ideário à infância de uma forma inegável e evidente. É esse o segredo por detrás dos jogos infantis tão extensivamente representados em Kikujiro, ou antes deste, Sonatine. Só a figura da criança, no seu domínio inclassificável e sem identidade, sente esse pudor tão próprio de quem não passou, nem viveu e por isso brinca e encena experiências paralelas. Assim, é também notória a relação distante, pincelada com timidez de Kikujiro com o pequeno Masao, tão próximos ao longo do filme, mas sempre com um afastamento próprio de quem prefere encenar a ser sincero. No entanto, não deixa de haver cenas discretamente pungentes como as revelações maternas de ambos os personagens. Só quando essas situações exteriores desvelam a introversão dos dois personagens é que a sua humanidade, o seu calor e ternura nos surgem. Embora O Verão de Kikujiro pareça, por vezes, demasiado leve como a brisa estival ou excessivamente desprendido de um objecto narrativo consistente, é quando a história se problematiza, que se alcança nessas duas cenas, o primor do pudor e da crueza kitanesca. Ambas auxiliadas pelo silêncio e por olhares, truques de montagem simples como o isolamento das personagens quando face à desilusão. Aí é dada à câmera uma deslocação imprevisível em jogos implícitos. É através das personagens que este estilo austero e sempre repleto de pejo pode, ainda assim, se libertar um pouco.
Todo esse carácter sugestivo da montagem e da mise en scène catapulta o sentido para uma timidez encenada, para algo de belo, por justamente jogar com o que se revela nas entrelinhas. De forma alguma, todavia, conseguimos explicar através destas questões formais como é belo Kikujiro no Natsu, fazendo apenas uma tímida aproximação. Também a crítica, de modo geral, acabou por ignorar (ou não reparar) na beleza tão particular do filme - extensão previsível do resto da obra de Kitano - relegando-a para um filme ora entretido, ora repetitivo com a sua estrutura monótona de segmentos unidos através do percurso.
Essa beleza já descrita noutras ocasiões é reforçada pelas componentes técnicas já referidas, mas é sobretudo impulsionada pelo sentido imenso de Verão que desprende. Talvez seja subjectivo analisá-lo deste modo, mas a alegria de Verão é sobretudo esquecer-nos que estamos vivos. É, em parte, sentir que o tempo não existe mais, que ele parou, por asfixia, junto da luz do sol. A sabedoria relativa de Verão, portanto, é pensar que se tem a eternidade à nossa frente (pintada em tons azuis, amarelos e verdes). É por isso que a beleza refinada de Kikujiro no Natsu nos abala: é porque a sua estrutura é a dum “road-movie”. Apenas num “road-movie” o espectador tem a percepção devida do tempo, isto é, a de uma aventura imensa que começa de uma forma tão particular que ninguém é capaz sequer de pensar que irá eventualmente acabar.
A infância, do mesmo modo, pensa que nunca irá maturar-se numa outra coisa ainda. Inocentemente, a criança não quer que o Verão acabe. Tal é o mesmo sentimento quando vemos Kikujiro no Natsu e os seus adultos tornados brinquedos de papel: como crianças, desejando que não acabe. Depois disso, apenas nos resta uma emoção inexplicável, de uma beleza também ela fria e, talvez, remota, kitanesca: nostalgia. Uma maneira sorridente de chorar.
Assim, quando o leitmotiv musical de Joe Hisaishi irrompe só nos podemos subjugar de forma nostálgica às imagens comoventemente cruas (e porque na distância é que reside o mundo comovedor do imaginário). Kikujiro é tal e qual como Kitano nos descreve: um livro de imagens, um mosaico colorido reflectindo o autismo da criança (que é o mesmo que dizer, o espectador) na passagem cruel do tempo.
E, no entanto, é como se tudo fosse apenas uma miragem…

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