terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Môjû

Título Original: Môjû
Título em Português: Blind Beast
Realizado por: Yasuzo Masumura
Actores: Eiji Funakoshi, Mako Midori, Noriko Sengoku
Data: 1969
País de Origem: Japão
Duração: 86 min.
M/16Q
Cor, Som











"Between sadism and masochism a relation develops between tormentor and sufferer, between the one who masters and the one who submits, between the attacker and the victim. Both parties recognize these relations as human bonds, and both feel that their wish to escape their isolation has been granted beyond any expectation. Within the grip of this relationship, the intensity steadily escalates, igniting a terrific energy. Unlike ordinary sex, in this case when one has selected an appropriate partner, the bond can continue indefinitely. The union came about with the aim of creating something that yielded rare fruits. Therefore, if we posit that love, which has lost all its previous supports, has turned back to sexuality, we refer to the point at which love takes the form of sadism and masochism." - ensaio de Yasuzo Masumura na revista Eiga Geijutsu (Film Art).


Como é sabido pelo leitor habitual (se é que ele existe mesmo...) destes escritos-sem-graça, quando falamos de cinema japonês naquela recta final dos sixties, temos sempre em vista uma época de transição. De transição a todos os níveis, já que a temática eminentemente social, pincelada aqui e acolá com temas neo-realistas não bastava já para categorizar uma nova concepção cinematográfica, cada vez mais apoiada no sentido de não ter sentido nenhum. Na verdade, às primeiras temáticas e à formalidade estetizada por uma rigidez plástica impressionante (aos primeiros filmes da Nouvelle Vague japonesa não podemos preconizar um sentido ainda iconoclata e caótico, mas sim, de denúncia social) dá-se numa constelação inédita, um novo tipo de filmes: já não são violentos, são viscerais; já não são voluntariamente sensuais, são forçosamente eróticos.
Ora, é nesta corda bamba, que Yasuzo Masumura - um dos primeiros a dar o salto da teoria para a prática cinemática nesses verdes anos de 50 (agora tão distantes) - se auto-posiciona, como quem, aprisionado pelo Estúdio e pela finança (não olvidar que este Blind Beast ainda está na sombra da Daiei), pode querer dar-se ao luxo de ser transgressivo, numa época em que era, justamente isso que se pedia. É certo que o cinema de Masumura sempre tratou a loucura no limite da compreensão humana, como algo que vem figurar o trauma e é esse salvamento de toda a vil dor (quer seja ela física ou psicológica, ou as duas). Isto ainda muito numa tradição de folclore Noh, onde a figura do louco era a representação transcendental daquele que via a verdade pela tragédia (não é de estranhar que de todos os realizadores japoneses da Nouvelle Vague, Masumura e, quiçá, Shinoda sejam os mais "conservadores" no que toca ao reciclar temas culturais). Mas, se em anteriores títulos se perfilavam sombras dessa mesma tradição cravada no inconsciente colectivo japonês, o que sucede neste Moju, ou se quisermos, A Besta Cega é ligeiramente diferente. Adaptando um conto do sempre adaptável (desculpem lá a redundância) Edogawa Ranpo, o mestre literário do bizarro, o objectivo de Blind Beast não é tanto inscrever esse carácter universal da coisa (nem por sombras, se trata aqui de um cinema social), mas sim redigir (no termo mais amplo da palavra) um tratado sado-masoquista onde o horror da corporalidade dá lugar à despersonalização em nome do prazer infinito. E quanto a isto, relembre-se apenas o que Nagisa Oshima faria um punhado de anos mais tarde, na sua infâmia com Ai no Corrida (O Império dos Sentidos).
Embora seja filmado como o thriller suspenso na bizarria de Masculinos e Femininos em Manji (Paixão) de 1964 , o que mais espanta neste Besta Cega são os décors e os cenários ora pendendo para um carácter surreal (que se deixa inexplicavelmente em aberto), ora para uma simples apresentação naturalista do estúdio do Cego que rapta uma modelo para desenvolver uma arte que brote genuinamente do tacto. Esse mesmo monstro que claustrofobiza a bela no inferno da servidão, começa por apenas desejar criar a estátua perfeita. Mas, eis que conhece o amor! Um amor-paixão circunscrito a jogos eróticos na escolha derradeira entre a prisioneira (simbólica da mulher iniciadora, que desbrava a vivência passada) e a sua mãe (que alcança o lugar irreconciliável da despedida, visto que é com o despertar da sexualidade do macho que se se apercebe não haver mais espaço para a força maternal - a força anti-sexo, por excelência). É claro que as consequências psicológicas da tragédia atípica vão em crescendo - como o Liebestod de Richard Wagner a gritar enraivecido no trailer - para um consciencializar da barroquice derradeira. A cegueira efectiva, no fim, não é aquela que surge por fait-divers biológicos, mas sim, a parida nesse amar loucamente sem consciência emocional, uma espécie de anestesia sentimentalizada, ainda melhor, anulação de vontades individuais. Um amor que "perdeu todos os seus suportes" e que se maquinalizou em adoração à carne alheia, mas essa adoração jamais implica distância, pelo contrário, alude perpetuamente à pertença numa proximidade, em última estância, fatal. Os dois amantes, portanto, deixam de enxergar a luz e caminham deitados, apenas tacteando os seus corpos; animalizam-se (pois habituam-se a serem o monstro um do outro) aniquilando a sensibilidade, em nome do prazer em forma de devir, de perpetuação sem começo nem aguardando um fim pacífico. O homem, porque se sente responsável pela morte da Mãe (a morte da sua mocidade virginal, ponto), e a mulher, porque, estranhamente, se vende à fatalidade ultra-romântica - a "tal" cuja prova última reside no duplo suicídio dos amantes naquela esteira do alcance da totalidade da existência através da união primordial. E sobre isto ela mesma clama como despedida:

The world of touch...
The world of insects...
The lower orders such as the jellyfish...
Those who venture to the edge of such worlds
can expect only a dark, dark death to envelope them.

Nota:

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