domingo, 18 de dezembro de 2011

Kanzo Sensei

Título Original: Kanzo Sensei
Título em Português:
Dr. Fígado
Realizado por:
Shohei Imamura
Actores:
Akira Emoto, Kumiko Aso, Juro Kara, Masanori Sera, Jacques Gamblin, Keiko Matsuzaka, Misa Shimizu
Data:
1998
País de Origem:
Japão
Duração: 128 min.
M/12Q
Cor, Som








No seu perspicaz artigo sobre Shohei Imamura, Nelson Kim associava aos últimos três filmes do cineasta uma carência fantasmagórica tanto de uma tensão artística essencial que leva um criador a descobrir novos assuntos para tratar, como a urgência que o leva a procurar novos esquemas para reformular coisas antigas. Na verdade, é inquestionável que tanto The Eel (1997) como este Dr. Akagi (Dr. Fígado, na nossa tradução em DVD, 1998) ou ainda Warm Water Under the Red Bridge (2001) são peças de um mesmo edifício. Fazem parte de uma mudança discreta no percurso de Imamura (nas suas palavras, e citando outra vez do artigo de Kim): “Eu quero fazer filmes verdadeiramente humanos e japoneses, confusos e inquietantes”. Se estas características percorrem a obra deste espírito livre (como bem lhe chamou Paulo Rocha no seu documentário), o que difere absolutamente e só se revela nesta “trilogia da velhice” é a profunda e dogmática inquestionabilidade do cinema.
Por profunda inquestionabilidade do cinema queremos referir, de entre outras coisas, a satisfação plena no modo narrativo, no regresso incondicional a um certo tipo de diegese. Nesses três filmes já referidos (e também como bem apontou Nelson Kim) há uma enorme plasticidade nos géneros e no tom, de tal modo, que os filmes libertam-se de fardos melodramáticos que supostamente lhes eram exigidos à priori. É característica constante uma narração episódica, sendo a peripécia a palavra de ordem na acção: é, por pequenos retalhos que se narra a história do assassino ansioso por se redimir em The Eel as aventuras de um médico em plena segunda guerra mundial com Dr. Akagi e ainda mais fraccionado se torna o affair bizarro entre um homem e uma mulher que esguicha litros de água quando atinge um orgasmo em Warm Water Under the Red Bridge.
O movimento destas diegeses contraria, por isso mesmo, as narrativas épicas (inclusive as do próprio Imamura, exemplo: The Profound Desire of the Gods de 1968 ou Ballad of Narayama de 1983): já não se orquestra do todo para a parte, mas da parte para o todo. São filmes cujo desenvolvimento se dá por fragmentos, são eles que unidos montam estes heróis peculiares. Dr. Akagi é semelhante, por essa razão, a Takuro Yamashita, personagem principal de The Eel e a Yosuke Sasano de Warm Water Under…, no exacto sentido em que cada um materializa essa inquestionabilidade do cinema. Cada um carrega a verdade do entretenimento, aquela que nos sussurra por entre o espaço vazio da tela do cinema, e nós mesmos: todo o género é apenas um degrau para outro género. Assim, é esta trilogia autenticamente inclassificável, como se o cinema fosse demasiado grande para se classificar, como se apenas restasse aquela magia projectada num mundo que é e não é real; um mundo com o corpo nas coisas, e o espírito nas nuvens.
Deste modo, Shohei Imamura, no seu ritmo e a seu tempo, torna-se clássico, faz-se mago encantador. Descomplexa-se de maneira tal que “destila o absoluto” (exactamente como diz Jorge Leitão Ramos na sua crítica no Expresso) nessa mesma ligeireza que não omite a profundidade, espelhada nas abordagens plurais que os filmes tomam. No entanto esta ideia do filme plural que destila eternamente o absoluto leva Nelson Kim a apontar uma ambiguidade, talvez um retrocesso na obra de Imamura. Os seus últimos três filmes são um regresso a uma forma que não era inteiramente sua.
Comparar Dr. Fígado (1998) com Black Rain (1989) é, por isso mesmo, um óptimo exercício de interpretação, não só porque ambos tomam a Segunda Guerra Mundial como palco da acção dramática (e os seus efeitos na mentalidade japonesa), como são dois filmes diametralmente opostos nessa apresentação, fabricados pelo mesmo realizador.
Black Rain é um melodrama vertical, assente numa rigidez narrativa impressionante e comovente. Foca-se no destino trágico e lento das vítimas dos bombardeamentos nucleares de Hiroxima. A morte aparece lentamente e esconde-se, levando vagarosamente os sobreviventes pela radiação. Se o ambiente pacato familiar e a composição dos planos geométricos nos poderá relembrar Yasujiro Ozu (Imamura foi seu “assistente” antes de ser realizador), a tragédia que se inicia com um prenúncio e se constrói em pináculo ante a morte, é apresentada como impossível de ser ultrapassada. É esse o propósito da tragédia, um registo narrativo que se efectua em regras precisas: a de comunicar o intolerável sofrimento de seres sem retorno. Embora, em termos formais Black Rain difira do resto da obra de Imamura, é neste cerne temático que reside a “gravidade” dos filmes da década de 60 como Hogs and Warships (1961), Insect Woman (1963) ou ainda Intentions of Murder (1964). Esta intolerabilidade das tragédias, que através do seu extremismo, desejam refundar as intimidades humanas.
Em Dr. Fígado, por contraste, também a morte (a morte dos pacientes, e a morte implícita e explícita dos soldados japoneses, incluindo o próprio filho de Akagi) está omnipresente. A diferença é que ela se apresenta como cinema, no sentido em que cumpre o seu dever lúdico. Também a sexualidade – fonte de interesse permanente num cinema que “analisa, antes do mais, as partes mais baixas do ser humano” – se faz amor em Dr. Fígado. Amor entre Akagi e Sonoko, amor entre o japonês Akagi e o holandês inimigo, amor entre o cidadão Akagi e a sua pátria e amor entre o doutor Akagi e o seu paciente.
A inquestionabilidade deste cinema tardio em Imamura, reside numa convicção, quiçá motivada pela velhice, de que o cinema pode representar a realidade sem realidade, isto é, que o cinema é uma espécie de milagre incontestável e insolúvel. Que existe espaço e tempo para fragmentar a gravidade do real e usá-la para disseminar o delírio. A loucura de Akagi é, assim, devolvida na própria mise-en-scéne e, rememora-nos estranhamente um filme esquecido de Imamura e o seu final insano, The Pornographers (1966). Ambos finalizam-se no mar e na loucura meio absurda, e por isso incompreendida, dos protagonistas. O cinema torna-se assim eternamente flutuante e a sua mais precisa imagem é a coluna de fumo da bomba atómica (assustadora na sua aparição em Black Rain e uma imagem aterrorizadora para qualquer japonês) confundida com um fígado canceroso. A seriedade subversiva do vai-e-vem reenvia o nosso olhar a relativizar-se ao infinito do absurdo. É este o mérito de Imamura e da sua trilogia final, ao mesmo tempo uma mudança como se de um testamento escrito em celulóide se tratasse.

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