terça-feira, 15 de julho de 2008

Hatachi no Binetsu

Título Original: Hatachi no Binetsu
Título em Português: A Touch of Fever
Realizado por: Ryosuke Hashiguchi
Actores: Yoshihiko Hakamada, Reiko Kataoka, Masashi Endô, Sumiyo Yamada, Koji Sato, Fumiaki Harada, Kouta Kusano
Data: 1993
País de Origem: Japão
Duração: 114 min.
M/16Q
Cor, Som









O mais fácil (e até o mais politicamente correcto numa era em que quanto mais homossexual mais rentável) era abreviarmos um filme como Hatachi no Binetsu (A touch of Fever ou, numa traducção mais afim de cativar o gajado: The Slight Fever of a Twenty year old) a simples e masturbatória (para os outros?) obra de cinema homossexual. Se é verdade que a temática é tão só e apenas essa (aliada à descoberta da carnalidade num sentido um pouco mais lato), o seu visionamento requer um bocado mais de respeito, não no sentido em que o "cinema queer" (termo como gostam os entendidos) por si só signifique superficialidade de erotismos fáceis, mas que por existir essa coisa estranha chamada barreira intransponível das orientações sexuais, isso seja motivo para impedir qualquer pessoa (que não as visadas) de o ver. Um ponto acente desde já: embora se lide aqui com relações homossexuais, isso não quer dizer que o filme seja apenas para homossexuais. É necessário começarmos a pensar Cinema como global, sem agentes discriminados nem públicos-alvos. Pelo contrário, obras de realizadores como Ryosuke Hashiguchi, Tsai Ming-Liang ou ainda Apichatpong Weerasethakul, não só provam pela sua complexidade formal e estilística serem interessantes tanto para quem se identifique intrinsecamente com a temática ou não (o que importa, no final, é assistirmos um bom filme), como imputam, usando um registo e uma apresentação muito peculiares, uma nova interpretação para os caminhos sinuosos e instáveis do desejo.
O mais extraordinário nestas aventurosas produções (daí a sua autenticidade e exclusividade) é que estão cercadas por um ritmo cinzento, pausado e complexo, denotando neste paradigma criativo que amor e felicidade não são sinónimos. Enquanto que num Tropical Malady (Apichatpong, 2004) amor e barbárie são a mesma coisa, no sentido em que amar é a manifestação mais próxima desse "animal primordial" (por isso o amante do rapaz se transfigura num tigre mítico que lhe devora a alma), num Vive L'amour (Tsai Ming-Liang, 1994) o contacto carnal silencioso e desesperado com o outro ignoto é sempre frustrado pois a sua fugacidade abala os afectos (por isso a rapariga vai carpindo angustiada naquela cadeira deserta: porque chega à conclusão que chorará sempre sozinha no desespero de ser incontactável aquilo que sente), neste A Touch of Fever a sexualidade é reduzida a perverssão, visto que este trata (quase com uma frieza e rigor documental) a prostituição de adolescentes e as suas vidas lentamente a descobrirem-se, numa ambiguidade interior sempre muito próxima de uma introspecção solitária.
Hashiguchi filma, assim, aquele desespero mudo à semelhança da câmara estanque de Tsai Ming-Liang: planos centrados e imóveis (sendo o movimento apenas feito quando os personagens estão prestes a abandonar o plano), inexistência de "close-ups" como subverssão das emoções facilmente complacentes e a recusa dos "raccords" como rejeição de um seguimento dinâmico da narrativa. É nesse tempo real, e por isso, angustiante da sequência que mergulhamos nas faces distantes dos personagens que perfilam o mundo negro, sem movimento, captado pela câmara, ecoando em nós a convicção de que há algo mais vital por detrás dos diálogos informais e de circunstância. É nas raízes desse quotidiano filmado que existe um pathos em A Touch of Fever, é nessa elevada verosimilhança com o real que se resgata esse significado do desespero da rigidez geométrica do plano fixo, fazendo assistir placidamente ao rumo desorientado dos dois prostitutos, não procurando nada nesse vazio enorme frente aos seus (nossos) olhos. Só resta assim um desejo escravizado na perversidade dos quartos claustrofóbicos e dos homens que lucram com isso (veja-se como são visceralmente diferentes as cenas do cliente no quarto com o rapaz e do cliente jantando em família na sua presença).
A força das imagens de A Touch of Fever reside nos lugares mais inesperados. A sua precisão aguçada nasce dessa espécie de morfologia do tempo real em plano que forma essa vitalidade nas sequências longas e pausadas. Não levando, apesar de tudo, o discurso fílmico de forma tão radical como um Tsai Ming-Liang nos seus momentos mais inóspitos (relembre-se um The River ou um Goodbye, Dragon Inn), Hashiguchi, relembra-nos apesar de tudo o estilo do cineasta de Taiwan, pois acaba a sua narrativa não a acabando. Apesar do trauma da penúltima cena (a prova de que tudo estava errado; note-se a canção infantil do rapaz mais jovem como grito final de arrependimento) a película volta-nos a lançar nesse carácter aberto da vida rotineira. Esse final ao amanhacer na rua citadina - como se nada tivesse passado - é a chave formal de um filme que nos revela o carácter circular da vida simultaneamente monótona e aventureira desses dois rapazes.

Nota: 3/5

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